AS EXÉQUIAS REAIS: A CERIMÓNIA DA “QUEBRA DOS ESCUDOS”

A cerimónia da “Quebra dos Escudos”, realizada por ocasião do falecimento dos monarcas, celebrou-se em Portugal desde o reinado de D. João I até ao falecimento de D. Pedro V, em 1861. Consistia o evento num cortejo processional civil, liderado pelo senado camarário, com paragens em determinados locais da malha urbana, singularizados pela sua importância simbólica, onde se procedia à quebra ritual de 3 escudos de madeira decorados com as armas reais.

João Baptista Castro, no seu Mappa de Portugal Antigo e Moderno, faz-nos uma breve descrição do cerimonial:

“(…) tanto que falecia algum dos Reys Portuguezes, se despachavaõ logo Correyos para as Comarcas do Reino, com a qual noticia se levantavaõ nas Cathedraes, e Paroquias túmulos de madeira cubertos de lutos para se fazerem os Officios, e funeraes, dobrando ao mesmo tempo os sinos.

Depois sahia em dia determinado da Casa do Senado a comitiva seguinte: A principal pessoa hia a cavallo vestida de luto, e levava huma bandeira negra ao hombro, que arrastava até o chaõ. Com o mesmo luto, e da mesma sorte o seguiaõ os tres Vereadores daquele anno acompanhados de toda a Nobreza, e assistidos de tres Ministros, que lhes levavaõ tres escudos pretos; e caminhando para a parte mais publica do lugar, onde já estava prevenido hum estrado com alguns degráos, cuberto tudo de pannos negros, se subia nelle o primeiro Vereador com hum escudo preto nas mãos, e voltado hum pregoeiro para o povo, dizia tres vezes em voz alta: Ouvide, ouvide, ouvide. Logo o primeiro Vereador dizia estas palavas, que levava escritas: Choray, povo, choray a morte de vosso Rey, que vos governou com justiça, e amor de pay. E subindo o escudo sobre a cabeça, o deixava cahir em terra, e se quebrava. Com as mesmas circunstancias se repetia a mesma cerimonia pelos outros Vereadores, levantando ao mesmo tempo o povo grandes clamores, e prantos. Depois caminhavaõ para a Igreja, na qual assistiaõ ao funeral, que também se fazia com aquella expressaõ de pena, e dor, que merecia a grandeza da perda.(…)”

Solenidade sujeita a regras previamente estabelecidas e definidas pelo poder real, numa clara demonstração do poder de controlo social por este exercido, servia igualmente os interesses das oligarquias locais pela sua formalidade, sumptuosidade e, particularmente, pela disposição dos participantes no préstito através da qual se exibia a hierarquia dos poderes na sociedade local.

Os Livros de Vereações da Câmara de Beja referem-nos os cerimoniais celebrados por ocasião do falecimento de Filipe II, D. João IV, D. Luísa de Gusmão, D. Afonso VI e D. Pedro II. São omissos relativamente às exéquias celebradas pelo passamento de D. João V e de D. José I, mas o Livro da Receita e Despesa concernente ao ano de 1750 regista os gastos realizados com os cerimoniais fúnebres do “Magnânimo”, que montaram a 539,080 réis. Teve o Concelho, nesse ano, uma receita de 1,333,234 réis. As despesas com os funerais régios representaram, pois, 40,4% desse montante, quantia apreciável que denuncia bem os gastos que tais celebrações acarretavam para o erário camarário.

As exéquias reais tinham o seu início com a recepção de uma carta na qual se ordenava que se desse início aos cerimoniais do luto. Aberta a carta, em sessão de Câmara, com a presença, várias vezes documentada, do provedor e do corregedor/ouvidor da Comarca, logo se determinava o que necessário fosse para que a celebração decorresse com a dignidade e elevação requeridas. Assim ocorreu na vereação realizada em 7 de maio de 1621, com a leitura da carta em que se ordenava o que se haveria de fazer fazer no pranto e cerimónia da “quebra dos escudos”, pelo falecimento de Filipe II. A 17 de novembro de 1656 foi vista em Câmara uma carta da Rainha viúva sobre os “dós” que se deveriam fazer pela morte de D. João IV; o passamento do rei havia ocorrido a 6 desse mês, pelo que a recepção da carta, prevenindo sobre os cerimoniais, foi tardia. Mas já em vereação realizada a 8, vista a notícia do falecimento de Sua Majestade, se tinha assentado que todas as baetas que houvesse nas lojas da cidade se embargassem para que não fossem vendidas para fora, por serem necessárias para os lutos do dito senhor. A 27 de setembro de 1683 foi apresentada em Câmara uma carta, escrita a 13 desse mês e assinada pelo príncipe regente, D. Pedro II, dando conta do falecimento de el Rei seu irmão, D. Afonso, pelo que mandaram se fizessem as exéquias na forma costumada. Em vereação realizada a 18 de dezembro de 1706, porque era público o falecimento de Sua Majestade D. Pedro II, e ainda que não tivesse vindo ordem da Junta da Casa do Infantado para se fazerem os “dós”, mandaram logo que se repartissem os lutos por todos os oficiais camarários e determinaram que seria o mercador Pedro Dias a fornecer todas as baetas necessárias, para o que se lhe deveria passar uma pauta que seria assinada por todos aqueles que fossem contemplados na repartição dos lutos.

A compra e repartição das baetas para o luto era preocupação imediata das vereações camarárias, ao celebrarem-se as exéquias reais, por forma a evitar o seu açambarcamento e alta de preço. Quando do falecimento de D. João IV, em vereação realizada em 8 de novembro, assentaram que todas as baetas que houvesse nas lojas da cidade se embargassem para que não fossem vendidas para fora. Mais mandaram que as ditas baetas se pagassem pelos preços praticados na cidade e que os mercadores que as ocultassem, ou vendessem para fora, seriam presos e, à sua custa, se mandariam buscar as necessárias que lhes seriam pagas ao preço corrente. Em vereação realizada em 16 de março de 1666, porque Sua Majestade tinha ordenado à Câmara que fizesse as demonstrações de sentimento pela morte da rainha sua mãe, D. Luísa de Gusmão, e porque nas casas dos mercadores se não achavam baetas negras de cem fios, requereu o procurador do Concelho que se lhes tomassem as de cor para se mandarem tingir, e a mesma diligência se fizesse com os tintureiros.

Esta atitude era comum a outros concelhos. A 14 de agosto de 1750, determinou a vereação de Ponte de Lima que se comunicasse aos mercadores e tendeiros da terra que não elevassem o preço das “fazendas e trastes” destinados ao luto real pelo falecimento de D. João V.

As exéquias reais acarretavam despesas extraordinárias e de montante sempre elevado. Como sucedia em outras circunstâncias decorrentes de momentos de fausto ou infausto da vida da família real, e que obrigavam a Câmara a celebrá-los, também aqui se recorria a empréstimos, dada a rigidez das rendas e despesas camarárias que dificultavam o fazer face a tais dispêndios. A 3 de junho de 1621, compareceu em Câmara Domingos Lopes, rendeiro dos bens de raiz da Câmara, o qual fez entrega de 80,000 réis para gastos nas exéquias de Filipe II, dos quais seria ressarcido das rendas da cidade, conforme as provisões. Presentes estavam o corregedor e o provedor da Comarca, respectivamente, Dr. Pero da Fonseca Teixeira e Dr. André Cerqueira Botelho, o licenciado António Furtado, juiz de fora, os vereadores Jorge Bocarro Pegas e Lopo Estaço de Negreiros e o procurador do Concelho, António Dias Cota. Com os “dós” que se fizeram pelo falecimento de D. João IV gastou a Câmara 129,250 réis, despesa que se pagou com o dinheiro dado, por empréstimo, pelo recebedor dos bens de raiz, por a Câmara não ter dinheiro de suas rendas. Em vereação realizada em 27 de setembro de 1683, por falecimento de D. Afonso VI, porque as rendas camarárias eram diminutas e havia dívidas que não podiam ser solvidas no imediato, nem tampouco se poderia acorrer aos gastos com as exéquias reais, determinou-se que se obrigassem os mercadores locais a fornecer as baetas necessárias ao luto, para que entre todos dessem 269 côvados de tecido que seriam repartidos pelo provedor e pelo ouvidor da Comarca, juiz de fora, vereadores, procurador do Concelho, juiz de fora dos órfãos, escrivão da Câmara, porteiros da Câmara, síndico da Câmara e tesoureiro da Câmara, procuradores do povo, procurador do povo mais velho do ano antecedente, alcaide, e ainda mais 7 côvados para se cobrirem as cadeiras da Câmara e mais côvado e meio para se cobrir o banco em que se quebrariam os escudos. Fez-se a repartição do fornecimento da baeta pelos mercadores Fernão da Fonseca, José Lopes, Luís Rodrigues Lopes, Manuel Lopes da Silva, Martim Gonçalves de Carvalho, Manuel de Sousa Viegas, Luís Marques, Afonso Pinto Duarte, António Rodrigues Dória e António Lopes. Forneceram, no seu conjunto, 285 côvados de baeta cujo custo montou a 185,170 réis, os quais se pediram por empréstimo aos ditos mercadores, tendo-se ordenado ao escrivão da Câmara que lhes passasse mandatos para que se pagasse, posteriormente, a cada um deles, a sua verba.

Como atrás foi dito, para as exéquias de D. Pedro II determinou-se que seria o mercador Pedro Dias a fornecer as baetas necessárias. Como a Câmara não tinha bens para satisfazer a despesa mandaram se pedisse emprestado do dinheiro que estava depositado para o reparo das fortificações. Determinações estas tomadas a 18 de dezembro de 1706, por ser pública a notícia do falecimento de Sua Majestade, ocorrido a 9 desse mês, ainda que não tivesse sido recepcionada carta da Junta da Casa do Infantado para que se desse início aos cerimoniais fúnebres, a qual só foi conhecida em vereação realizada em 24 de dezembro: em consequência, mandaram que se colocassem éditos pelos lugares públicos da urbe e se apregoasse pelas ruas que toda a pessoa, de qualquer condição, trouxesse luto por 2 anos, o primeiro ano rigoroso, de baeta com capa comprida, e o segundo aliviado; às pessoas pobres e miseráveis exigia-se que trouxessem apenas um sinal de luto, na forma do decreto de Sua Majestade, sob pena de prisão. Também aos nobres se exigia que trouxessem tal sinal sobre o trajo de luto.

Em todo o reino, o luto oficial determinado foi por 2 anos, o primeiro rigoroso e o segundo aliviado. Tal como em Beja, também em Ponte de Lima foi essa a determinação camarária, tendo-se ordenado que todo o povo, assim como militares e nobres, teriam obrigatoriamente que expressar o luto trazendo consigo um sinal. Em Évora o senado camarário determinou que os pobres, sem recursos para praticar luto inteiro, deveriam usar, pelo menos, um seu sinal, normalmente um “fumo” no braço.

Em vereação realizada a 29 de dezembro, deliberou o senado camarário bejense que, tal como se havia procedido aquando das exéquias celebradas pelo falecimento da rainha D. Maria Sofia Isabel de Neuburgo, se desse a cada oficial camarário, pelas exéquias de D. Pedro II, uma quantia determinada para luto deles e seus criados. O quantitativo das verbas a atribuir a cada um escalona-se conforme a rígida hierarquia social própria de uma sociedade de ordens. Assim:

Ouvidor - 23,250 réis para ele e seu criado;

Provedor - 23,250 réis para ele e seu criado;

Juiz de fora do geral - 23,250 réis para ele e seu criado;

Vereador mais velho - 23,250 réis para ele e seu criado;

Vereador do meio - 23,250 réis para ele e seu criado;

Vereador mais moço - 23,250 réis para ele e seu criado;

Procurador do Concelho - 23,250 réis para ele e seu criado;

Escrivão da Câmara - 23,250 réis para ele e seu criado;

Dr. juiz dos órfãos - 23,250 réis para ele e seu criado;

Tesoureiro da Câmara – 8,850 réis para o seu luto;

Síndico da Câmara – 8,850 réis;

Porteiros da Câmara (2) – 14,400 réis (2x7,200)

Procuradores do povo (2) e o mais velho do ano anterior – 21,600 réis (3x7,200)

Alcaide - 7,200 réis;

Meirinho da ouvidoria - 6,480 réis;

Meirinho da provedoria – 6,480 réis;

Meirinho da Cidade - 6,480 réis;

Escrivão das armas - 6,480 réis;

7 côvados de baeta para as cadeiras – 5,040 réis (7x720);

6 côvados de baeta para se cobrir a mesa da Câmara – 4,320 réis (6x720);

Côvado e meio de baeta para cobrir a mesa em que se quebraram os escudos e para cobrir o banco dos procuradores do povo – 1,080 réis (1,5x720)

22 côvados de baeta para os escudos, para cobrir o cavalo e para o estandarte - 15,840 réis (22x720)

Releve-se que o quantitativo atribuído ao escrivão da Câmara, 23,250 réis, era exactamente o mesmo que era atribuído aos oficiais que, hierarquicamente, o precediam, prova da relevância que era atribuída ao seu cargo.

Importou, assim, a despesa dos “lutos” em 322,350 réis, importância considerável, mas ainda assim distante dos 539,080 réis gastos nas cerimónias fúnebres pelo passamento de D. João V. Em Ponte de Lima, porque a Câmara carecia de meios financeiros para efeito da celebração da morte deste monarca, delegou-se no procurador do Concelho o encargo de reunir a quantia necessária. Assentou-se que 200,000 réis seria o quantitativo necessário para tal celebração e que fosse pedido, por empréstimo, por conta das rendas camarárias a vencer. A assunção imperativa de tais cerimoniais por parte das Câmaras compelia à contracção de empréstimos, por vezes vultuosos e com reflexos na administração camarária dos anos subsequentes. Em Ponte de Lima foi necessário recorrer à venda de património para se saldar a dívida contraída com as cerimónias fúnebres celebradas aquando do falecimento de D. José I. Outras instituições camarárias gastavam avultadas somas nestas ocasiões tão marcantes da vida da família reinante, como as Câmaras de Barcelos, Esposende, Guimarães e Vila Nova de Cerveira. Em Montemor-o-Novo, em 1795, viu-se a Câmara compelida à contratação de um empréstimo no quantitativo de 240,000 réis, a fim de proceder ao pagamento das festividades realizadas aquando do nascimento do príncipe da Beira.

O cerimonial do quebrar dos escudos, conforme os Livros de Vereações da Câmara de Beja, obedece a um normativo que se manteve inalterável desde as exéquias celebradas por D. Filipe II, em 1621, até às exéquias celebradas por D. Pedro II, em dezembro de 1706. Fazem-nos os Livros de Vereações descrições das celebrações relativas ao passamento dos monarcas citados e ainda de D. João IV, em 1656 e de D. Afonso VI, em 1683. A descrição mais pormenorizada é a referente às exéquias de D. Pedro II, intuito logo explanado em princípio de termo de vereação celebrada em 3 de janeiro de 1707: “E logo na dita Camera porque o juis de fora o Doutor Joseph Jeronimo de Oliveira e os Veriadores asima nomeados fizeraõ a funsaõ de quibrar os escudos pella morte do Senhor Rei Dom Pedro segundo que santa gloria haja, ordenarão que pra que a todo o tempo se soubese a forma com que se fizeraõ se pusese e escrevese tudo o que nella obraraõ para que avendo semelhante ocasiaõ se emitase quanto se achase ser feito em divida forma por ser aplauzo comum do aseio com que se executou.” Era propósito do senado camarário deixar expresso, para memória futura e modelo a imitar, tudo o que se executou nos referidos cerimoniais, pela forma exemplar como decorreram.

Primeiramente, ordenou o senado camarário que se escrevessem cartas ao clero regular e secular, conventos e paróquias, para que fizessem durante 3 dias continuados sinais públicos de sentimento. A carta acha-se transcrita no termo de vereação: “Sua Magestade que deos guarde foi servido mandar a este senado carta pera que toda a pesoa se vestise de luto por tempo de dois annos pella morte do Senhor Rei Dom Pedro Segundo que santa gloria haja e porque seja publico o sentimento que devemos mostrar pois que taõ bem a Vossa Reverensia pertense fazer demonstraçaõ de tudo o que deve sentir pello falecimento deste grande Monarca, lhe pedimos o fasa eisecutar por tempo de tres dias continuos que correraõ em tersa-feira quarta e quinta que se contaõ vinte e oito, e vinte e nove e trinta do corrente, em hum dos ditos dias hade esta Camara obrar tudo o que deve pella morte do dito senhor, Deus guarde a Vossa Reverencia em Camra de vinte e quatro de dezembro de setecentos e seis”. Assinam o juiz de fora, Dr. José Jerónimo de Oliveira, os vereadores Francisco Freire de Carmona, João Conforte Correia e Francisco Bernardes de Figueiredo e o procurador do Concelho, Manuel Luís Correia. Mais ordenaram que se escrevesse às “pessoas principais e do lote de vereadores” para que assistissem às cerimónias. Também esta carta se acha trasladada: “Pella morte do Senhor Rei Dom Pedro Segundo que santa gloria haia detremina este senado eisecutar a funebre demonstrasaõ de semtimento na forma costumada em trinta do corrente por servisso de Sua Majestade que deos guarde queira Vosa merce presencialla com a sua assistencia desde o seu prensípio que o ade ter das Casas da Camra, asim o espramos de Vossa merce a quem Deos guarde = Beja em Camra de vinte e quatro de Dezembro de setecentos e seis.” Seguem-se as assinaturas. Mais determinaram que os porteiros da Câmara notificassem todos os advogados, escrivães, tabeliões e os demais oficiais de justiça que fossem assistir à dita função; e que 2 dias antes dos cerimoniais se começasse a dobrar o sino da Câmara, bem como os dos conventos e igrejas paroquiais, até às 8 horas da noite, e que assim se continuasse até ao dia aprazado, 30 de dezembro, dia em que se celebrou a cerimónia da “quebra dos escudos”. O monarca havia falecido a 9 desse mês; entre o seu falecimento e a cerimónia da “quebra dos escudos” decorreram 21 dias. A morosidade das comunicações, mas, também, a complexidade de todo o processo, desde o custear dos encargos financeiros inerentes até ao organizar do préstito, explicarão tal retardamento.

Pelas 11 horas da manhã do dia 30, reuniram-se, no Largo de Santa Maria, fronteiro às Casas da Câmara, os procuradores do povo, os 2 em funções e o mais velho do ano antecedente, com as capas caídas até ao chão, levando, cada um, um escudo, em madeira, com as armas reais pintadas, a ouro, em campo preto, de sorte que as mãos não se lhes vissem por irem debaixo da capa; atrás deles todos os que tinham servido de procuradores do povo, tantos de um lado como de outro; logo após, seguia-se, a cavalo, o vereador mais velho, Francisco Freire de Carmona, transportando um estandarte na mão, muito comprido, com as armas reais pintadas também a ouro sobre campo preto. O cavalo, coberto de luto, arrastava, pela cauda, grande quantidade de baeta pelo chão; adiante do cavalo, os 2 almotacés em funções, Francisco Borges Coelho e Francisco Jácome de Lemos, acompanhados por 2 criados, ambos de luto; adiante dos almotacés todas as justiças, a saber: Gregório Pinto, meirinho da provedoria, António Garção, meirinho da cidade e António Tavares Ramires, alcaide da cidade; atrás do cavalo caminhavam todos os escrivães, inquiridores e contadores e mais justiças ordinárias; seguia-se depois toda a nobreza citadina, sem ordem predeterminada, todos de capa caída, e logo após o senado camarário: à mão direita o governador da Praça, António Pereira de Lacerda, o juiz de fora, José Jerónimo de Oliveira, o vereador segundo, João Conforte Correia, o vereador mais moço, Francisco Bernardes de Figueiredo, o escrivão da Câmara, Francisco Pinto Pimenta, e o procurador do Concelho, Manuel Luís Correia; à mão esquerda, aqueles que haviam servido de alcaides e de almotacés. Todos transportavam varas pretas com as armas reais pintadas a dourado. Atrás destes seguiam os porteiros da Câmara, o porteiro-mor, Simão Martins, e o porteiro-menor, Manuel Gonçalves; após estes seguiam-se o capitão mais antigo da cidade, com o sargento-mor, António Soares, e demais sargentos, com uma companhia de infantaria, passante de cem homens, todos com as armas caídas e piques a arrastar pelo chão, e os alferes com uma bandeira negra e um tambor coberto de baeta. Dirigiu-se todo este préstito à igreja de Santiago, em silêncio profundo, sem que ninguém balbuciasse coisa alguma”.

Aí chegados, entraram, sem que houvesse banco ou assento para ninguém. No interior do templo, na capela-mor, tinha-se construído um cenotáfio, todo preto, sobre o qual se tinha colocado uma coroa de prata e um ceptro, numa almofada. Tinha este dois degraus, e sobre ele pendia um pálio de veludo preto, sustentado em 6 varas de prata; em volta, vários piveteiros e castiçais, com velas e brincos, e nos flancos 6 tocheiros, com folhas amarelas, 3 de cada lado. O diácono e o subdiácono celebraram missa de defuntos, cantada em cantochão pelos beneficiados da igreja e por 8 padres do convento de São Francisco, que integraram o coro. Assistiram também ao ofício religioso o vigário-geral com toda a clerezia citadina. Todos ouviram missa de joelhos e, após o responso, incensando o diácono o túmulo, saiu todo o acompanhamento para o Largo fronteiro à Igreja, tendo vindo todos os clérigos, de cruz alçada, acompanhar o senado camarário até à porta do templo. No Largo achava-se uma companhia de infantaria em formatura. Chegado o juiz de fora ao local onde estava uma mesa coberta de luto, deu-lhe o procurador do povo mais velho do ano antecedente o seu escudo e, pegando nele, olhou o povo presente e disse o seguinte soneto:

Clame o tempo emfim por toda a idade

e chore o povo com ansia e dor mais forte

pois tem cortado o mal da impia sorte

ao bem da soberana Majestade

 

Dou o Rei ao povo e na verdade

naõ caresse de que seus eisorte

por ser o bem timente desta morte

devindo por humana eternidade.

 

Estolle o corasaõ lamente o pranto

pois he logrado o bem e mal presente

Não admita pera alívio alguma gloria

 

E porque se eternise sentir tanto

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De hum mal e outro tem fraca memoria

Tendo acabado de declamar o soneto logo deu 3 pancadas com o escudo sobre a mesa, tendo-o quebrado à terceira. Disse então o vereador mais velho, que vinha a cavalo, para o povo que presente estava: “Chorai povo chorai povo que ja o voso Rei he morto.” E logo a companhia de infantaria, que precedia a Câmara, deu uma descarga de mosquetaria, a que respondeu com uma salva de nove tiros a artilharia que estava postada no Largo de Santa Maria. Daí dirigiram-se à Praça Grande, onde se achava outra companhia de infantaria em formatura e, chegados junto ao pelourinho, onde estava a mesma mesa coberta de luto que estava no Largo da igreja de Santiago, o procurador do povo mais velho dos que se achavam em funções deu o escudo ao vereador segundo o qual, dizendo para o povo, “Chorai povo chorai povo que ja o voso Rei he morto”, o quebrou com uma pancada sobre a dita mesa, após o que o vereador mais velho, montado a cavalo, repetiu as mesmas palavras ao que a companhia de infantaria respondeu com outra descarga de mosquetaria e a artilharia sita na Praça de Santa Maria salvou de novo; encaminharam-se então para esta última Praça onde, junto das Casas da Câmara, estava a mesma mesa sobre a qual o vereador mais moço quebrou o terceiro escudo que lhe foi entregue pelo segundo procurador do povo em funções. De novo o vereador mais moço repetiu as mesmas palavras, seguido do vereador mais velho, ao que de novo responderam com salvas a companhia de infantaria e a artilharia.

Juiz de fora, vereadores, almotacés e meirinhos quebraram então as varas que consigo levavam e os procuradores do povo despedaçaram os escudos que transportavam quebrados. Desceu-se então do cavalo o vereador mais velho e, todos juntos, subiram para as Casas da Câmara, advertindo que logo que aí se recolhessem deixariam de dobrar o sino da Câmara e os restantes sinos; de uma janela do edifício se arvorou então o estandarte que aquele transportara no séquito, junto do qual esteve de guarda a companhia de infantaria até que, sendo noite, se recolheu. E tendo-se ordenado alguns dias antes que todo o cerimonial se processasse sem que “se preguntase nem peçoa alguma falase nelle em publico pois hera indicente em auto taõ comovido não se fale mais palavra que perceptilmente”, tudo assim “susedeo com todo o aplauso.”

A imposição de silêncio ao longo de todo o cortejo contrasta com o costume antigo de se contratarem carpideiras para prantearem o defunto que “(…)se era Rey, diziaõ delle o bom tratamento, que fizera (…) ao povo, que o naõ vexara com tributos, que introduzira tanto dinheiro no tesouro, acrescentando tanto mais sobre o que herdara; e com estes, e outros elogios gritando, e soluçando faziaõ mais lutuoso aquelle Regio funeral.” Este costume medieval vigorou até ao reinado de D. João I, quando o senado da Câmara de Lisboa o extinguiu. Não deixou de haver, contudo, uma instigação ao prantear do defunto por parte do povo; veja-se a incitação lançada por aquele que quebra o escudo, secundado, de imediato, pelo vereador a cavalo, “Chorai povo…”. O ambiente era, decerto de grande consternação e pesar. E se a contenção emocional devia pautar o comportamento dos privilegiados, já no povo a exteriorização exuberante dos sentimentos de dor e piedade seria mais justificável.

O préstito carregado de pesado luto, o silêncio constrangedor, entrecortado pelo quebrar dos escudos, salvas e prantos, tudo concorreria para a criação de uma ambiência soturna e lúgubre conducente ao profundo envolvimento emocional dos circunstantes. O monarca fazia-se presente, simbolicamente, através da essa que se erguia no interior da igreja e dos objectos rituais depositados sobre a mesma, o ceptro e a coroa. Por isso que ao serviço religioso que lhe era prestado todos assistiam de pé, não havendo cadeiras para ninguém; na presença de Sua Majestade ninguém se sentava, salvo ordem expressa deste se se achasse presente.

Releve-se a ambiência de forte controlo social imposto pela obrigatoriedade do uso de luto por todos os súbditos, independentemente da sua condição social, bem como do poder de coerção que dimana das cartas enviadas à clerezia e à nobreza local, convocando-as para os cerimoniais fúnebres: eram momentos que obrigavam todos os súbditos, numa demonstração pública de pesar, amor e fidelidade a que ninguém se podia eximir. Também o elemento clerical foi compelido à participação nos cerimoniais pelo vigário-geral, sob cominação de graves penas. A descrição feita pelo escrivão não menciona, contudo, a presença de clérigos no cortejo, assumindo este uma feição civilista. Note-se que, após o serviço religioso feito no interior da igreja de Santiago, conforme a descrição que nos é feita, o clero presente acompanhou, de cruz alçada, o senado camarário até à porta do templo. Não nos é dito que hajam passado para o exterior do mesmo. Nos cerimoniais celebrados aquando do óbito de D. Afonso VI é-
-nos dito que, após o quebrar do primeiro escudo, no Largo fronteiro à igreja de Santiago, o clero presente, com a cruz alçada, se recolheu para o interior do templo enquanto os mais se dirigiam para a Praça Grande.

O povo assistia como espectador ao cortejo fúnebre que desfilava pelas ruas, achando-se representado no mesmo através dos respectivos procuradores, que transportavam os escudos reais. Se na descrição da “quebra dos escudos” pelo falecimento de D. Pedro II se refere que a incitação feita ao povo para que chore o monarca é feita através da expressão “Chorai povo chorai povo que já o vosso Rei é morto.”, a expressão utilizada no mesmo cerimonial pela morte de D. João VI é “Chorai povo, chorai, a morte de El Rei Nosso Senhor”. Se as palavras utilizadas não são as mesmas o conteúdo semântico é. No mais, as descrições feitas nos Livros de Vereações pelas exéquias de Filipe II, D. João IV, D. Afonso VI e D. Pedro II, mais ricas de pormenor umas do que outras, são em tudo idênticas. Também em Évora o cerimonial da “quebra dos escudos” se manteve inalterável até ao falecimento de D. Maria I, último soberano do Antigo Regime. Idênticos procedimentos se verificavam no cerimonial da “quebra dos escudos”, em Ponte de Lima e em Leiria. Em Torres Vedras era, provavelmente, a cerimónia mais aparatosa organizada pela Câmara e processava-se segundo as regras definidas para as demais vilas do reino.

Em Ponte de Lima as celebrações pelo passamento de D. João V foram magnificentes, como o terão sido por todo o reino, particularmente em Lisboa, onde se ergueram numerosos catafalcos, sendo o mais sumptuoso o que se erigiu na Sé. Este carácter puramente simbólico, teatral e mundano das comemorações fúnebres evidenciava a presença do espírito barroco. Em Braga, o arcebispo D. José de Bragança, irmão do falecido monarca, mandou revestir o interior da catedral com decorações de caveiras e esqueletos nos cortinados e sanefas. O “macabro”, próprio da sensibilidade barroca, fazia-se também presente, de forma exuberante, nos cerimoniais mortuários.

“Rei morto, rei posto”, diz o rifão popular. E a seguir às solenes exéquias fúnebres, celebradas com dor e pranto, seguia-se, inevitavelmente, a aclamação do novo rei, por entre festivas manifestações de regozijo que se celebravam por todo o reino. E tal como as despesas com as exéquias recaíam sobre a instituição camarária, também assim ocorria com as cerimónias do “levantamento” do novo rei.

Informam-nos os Livros de Vereações acerca da aclamação de Filipe III e D. Afonso VI. Filipe II faleceu em 31 de março de 1621; em 3 de junho determinou-se em sessão camarária a celebração da “quebra dos escudos”; a cerimónia de aclamação do novo monarca teria lugar a 28 de junho. Entre os 2 eventos, falecimento de um soberano e aclamação do sucessor, decorreram 3 meses: no dia 28 de junho, sendo juntos no Terreiro de Santa Maria, defronte das Casas da Câmara, o Dr. Pero da Fonseca Teixeira, corregedor da Comarca, o Dr. André Cerqueira Botelho, provedor da mesma, o Lic.do António Furtado, juiz de fora, os vereadores Jorge Bocarro Pegas e Lopo Estaço de Negreiros e o procurador do Concelho, António Dias Cota, bem como “os fidalgos gente principal nobre da Cidade com muita gente do povo”, daí dirigiram-se à porta do Castelo, transportando Jorge Bocarro Pegas, vereador mais velho, a bandeira real; aí chegados, “logo per ele foi dito em alta voz Real Real Real per ElRey Dom Felipe Noso Senhor Rei de Portugal. E o mesmo diseraõ os sircunstantes e mais gente do povo (…).” Daí encaminharam-se, “pelas ruas costumadas”, até à Praça onde o dito vereador mais velho pronunciou a mesma exortação, de novo repetida por todos os presentes. Dirigiram-se então ao Terreiro de Santa Maria onde, defronte das Casas da Câmara, o mesmo vereador, com o estandarte real alçado, “dise outra ves as ditas palavras e a mais gente que hia no dito acto(…)”.

O percurso seguido terá sido o mesmo utilizado na celebração da “quebra dos escudos”. Em Braga, este cerimonial efectuava-se em locais que simbolizavam os três poderes, o poder civil, junto das Casas da Câmara, o poder eclesiástico, no Terreiro do Paço, e o poder da nobreza, diante da porta do Castelo. Conforme esta interpretação, em Beja a porta do Castelo simbolizaria o poder da nobreza, a Praça Grande, onde se achava o pelourinho e Casas da Câmara, o poder civil e a Praça de Santa Maria ainda o poder civil e o poder eclesiástico, pois aí se encontravam as Casas da Câmara, senado e audiência, e a Igreja Matriz da cidade.

D. João IV falece a 6 de novembro, o cerimonial da “quebra dos escudos” ocorre a 29 desse mês e a aclamação de D. Afonso VI sucede no dia seguinte, dia 30. O tempo lutuoso foi interrompido, de forma súbita, por um cerimonial festivo, como é o da aclamação de um novo rei. Por regra, o luto prolonga-se no tempo e o seu esvaimento é gradual. Circunstâncias particulares terão contribuído para que tal não tivesse então ocorrido na cidade de Beja. Em vereação realizada em 25 de novembro, determinou-se que o cerimonial da aclamação se sucedesse no dia imediato ao da “quebra dos escudos”, dia de Santo André, porque nesse dia se realizava a procissão em que se comemorava a primeira tomada de Beja aos mouros, em batalha travada junto à cidade, num local onde se ergue a ermida de Santo André e onde a Câmara costumava deslocar-se todos os anos por provisão de Sua Majestade, pelo que deveria a aclamação associar-se a este préstito religioso. E assim foi que junta a nobreza no dito dia no Terreiro da Câmara, e as companhias da ordenança, alvorou o vereador mais velho Álvaro de Faria de Melo a bandeira real da Câmara dizendo em altas vozes “Real Real Real Dom Afonso Sexto Nosso Senhor Rei de Portugal”, ao que todos responderam, após o que se integraram na procissão, que saiu da Matriz de Santa Maria. Apenas a nobreza participou no acto, só uma vez se pronunciou a fórmula de aclamação e a participação na procissão terá obrigado à moderação das condutas. Celebrou-se assim a aclamação com sobriedade, salvaguardando-se os sentimentos de respeito e piedade devidos ao recente passamento do rei antecessor.

 

 

FONTES E BIBLIOGRAFIA

FONTES MANUSCRITAS

Arquivo Histórico Municipal de Beja

Livros de Actas de Vereações da Câmara Municipal de Beja

1621 - AHMB, CMB - B/A-01 - L. 38, Cx. 5

1656 - AHMB, CMB - B/A-01 - Lvº 69, Cx. 10

1666 - AHMB, CMB - B/A-01 - Lvº 76, Cx. 11

1683 - AHMB, CMB - B/A-01 - Lvº 92, Cx. 13

1706 - AHMB, CMB - B/A-01 - Lvº 109, Cx. 16

1707 - AHMB, CMB - B/A-01 - Lvº 110, Cx. 16

 

Livros de Receita e Despesa da Câmara Municipal de Beja

1750 - Livro da Receita e Despesa, PT/ADBJA/AL/CMBJA/E-A/001/0084 - Cx. 0042

 

DICIONÁRIOS E COROGRAFIAS

BLUTEAU, Raphael, Vocabulario portuguez e latino…, Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, 10 vols. Disponível em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5445.

CASTRO, João Baptista, Mappa de Portugal Antigo e Moderno, 3 Tomos, Lisboa, Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1762-1763. Disponível em http://purl.pt/22133.

SILVA, Antonio de Moraes, Diccionario da Lingua Portugueza, Tomo I, 8.ª ed., Empreza Litteraria Fluminense, 1890.

 

ESTUDOS

BARBOSA, António Francisco Dantas, Tempos de Festa em Ponte de Lima (Séculos XVII-XIX), Tese de Doutoramento em História - Especialidade em Idade Moderna, apresentada à Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, 2013. Disponível em http://hdl.handle.net/1822/34701.

FONSECA, Teresa, Relações de Poder no Antigo Regime – A Administração Municipal em Montemor-o-Novo (1777-1816), Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, 1995.

________________, Absolutismo e Municipalismo: Évora, 1750-1820, Lisboa, Edições Colibri, 2002.

SILVA, Maria Natália da, Poder e Família em Torres Vedras no Antigo Regime - Espaço de Actuação e Formas de Controlo Social (1663-1755), Lisboa, Edições Colibri / Câmara Municipal de Torres Vedras, 2006.

 

 

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