AS ALCAÇARIAS


Existe uma gravura, datada de 1850, da autoria de F. de P. Graça, impressa na Oficina de Silva Porto, em Beja, e que nos mostra a cidade, perspectivada de nascente, sendo a vista tirada, aproximadamente, do local onde existia um antigo cruzeiro, fronteiro à ermida de S. Pedro. É possível apreciar a dita gravura no átrio do edifício do Arquivo Distrital, pois que a mesma, em grande ampliação, mura a parede fronteira à porta de acesso do mesmo átrio.
Se não nos foi possível apurar quaisquer registos biográficos sobre o seu autor, F. de P. Graça, sabemos que o impressor, de seu nome António Inácio da Silva Porto, era natural do Porto de onde veio para Évora, em 1832, trabalhar como caixeiro. Porque revelasse dotes para os trabalhos de litografia, comprou uma oficina litográfica nesta mesma cidade após o que, por algum tempo, se ausentou para Lisboa onde trabalhou na litografia da Imprensa Nacional por forma a adquirir os conhecimentos necessários para o desempenho do ofício. Regressado a Évora, aí desenvolveu a sua actividade até que, a convite do então governador civil de Beja, dr. António Henriques Dória, se veio estabelecer nesta cidade, em casa oferecida pelo mesmo, em junho de 1844. A casa onde funcionou a oficina litográfica, sita à Rua Ancha, é a mesma onde nasceu o padre José Agostinho de Macedo e na qual existe uma lápide evocativa desse facto.
Em 1846, o conselheiro José Silvestre Ribeiro, então governador Civil de Beja, propôs a Sousa Porto a compra de uma tipografia com o fim de fundar um jornal, projecto em que ele o coadjuvaria. Mas só 12 anos mais tarde, em 1858, o projecto foi concretizado, com a fundação do semanário “O Bejense”, decano da imprensa baixo-alentejana, cujo primeiro director foi o próprio Silva Porto.[1] Assume-se este como pioneiro da imprensa regional, tendo deixado o seu nome ligado à fundação de vários jornais que não apenas “O Bejense”: foi proprietário e responsável do “Jornal do Povo”, fundador do jornal “O Cubense”, publicado em Cuba, sendo o seu primeiro número datado de 29 de Outubro de 1888, d’«O Liberal», publicado também pela primeira vez no ano de 1888 e d’«O Independente», que veio a público, pela primeira vez, em 9 de Outubro de 1894.
Mas voltemos à gravura. A muralha surge-nos praticamente desafrontada de quaisquer construções, a cidade ainda é, em grande parte, o burgo intramuros, herdado dos tempos medievais. A sul, extramuros, destaca-se a mole do Convento de São Francisco e a norte, também extramuros, a Igreja de Santo Amaro e o Convento de Santo António. O horizonte citadino é marcado pela Torre de Menagem e pelos pináculos das torres da Igreja do Salvador, do Convento da Conceição, da Igreja de Santa Maria e de Santiago Maior. Nada que hoje nos pareça estranho quando nos aproximamos da cidade, vindos das bandas de Serpa. O horizonte do burgo histórico permanece, felizmente, praticamente imutável, ainda não afeado por construção vertical de feição moderna e progressista. Que assim se conserve.
Fixemo-nos na banda sul. Na declivosa colina, abaixo do Convento de S. Francisco e do Colégio dos Jesuítas, onde funciona agora o comando da G.N.R., raras são as construções. O autor assinala uma fieira de casas que, descendo a encosta, antecedem uma construção que semelha uma pequena usina, as Alcaçarias. Seria esse pequeno aglomerado de casas, chamado de “Arrebaldinho das Parreiras”, o primeiro núcleo do futuro bairro das Alcaçarias. Porque as frontarias das casas ostentavam latadas de parreiras daí lhe terá vindo a designação.[2] Mais abaixo sinaliza o autor a Horta de Vasco Ruivo, a Horta d’el Rei e, logo após, uma ponte junto a um poço que, embora o autor não nomeie, será o Poço dos Frangos ou dos Francos.
À direita das Alcaçarias, para a banda norte, divisa-se a Igreja do Pé da Cruz, com algumas casas em derredor. Figura o autor da gravura, junto à Igreja, um Calvário, ermida de arquitectura incomum, com planta circular e cúpula em abóbada, sobrepujada por um lanternim que a iluminava interiormente. Da parede circular e da cúpula sobressaem pedras informes que simbolizariam as pedras atiradas a Santa Maria Madalena, a quem a ermida era dedicada. Foi a mesma demolida em 1921, por razões de “arranjo urbanístico”.[3] De feição arquitectónica semelhante existe em Ferreira do Alentejo uma Capela do Calvário, evocando o martírio de Cristo e que, declarado imóvel de interesse público, é hoje símbolo do Município.
Alcaçarias, do verbo árabe caçara, lavar, com o prefixo “al”, significa tanaria, pelame, lugar ou fábrica onde se curte ou prepara toda e qualquer qualidade de peles e couramas.[4] Era então aqui que se situava a indústria de curtumes citadina. Fora de portas, conforme a tradição mourisca, pois que esta era uma actividade altamente poluente. Para além do topónimo alcaçarias, e a asseverar a actividade aí praticada, existe, a sudeste, o bairro do Pelame e ainda o topónimo Poça da Lã, que deu nome a rua que hoje é denominada de Dr. Jaime António da Palma Mira, numa prática comum e censurável de alterações toponímicas que, como é evidente, adulteram e apagam a história de sítios e povoados.
Da indústria de curtumes já hoje não há memória. Há muito que ela ali se extinguiu. E seria o comboio que iria alterar a paisagem da colina que, desde as muralhas, se estende, para nascente, até às terras que bordejam o barranco do Poço dos Frangos, solos férteis onde, em tempos de antanho, abundavam as culturas hortícolas.
O comboio, chegado a Beja em 15 de fevereiro de 1864, alteraria de forma impressiva a paisagem descrita, pelas profundas transformações económicas e sociais que iria provocar. A economia regional tinha agora uma via para se integrar no grande mercado nacional, condição indispensável à valorização do seu produto agrícola e incentivo para o seu incremento. A comercialização dos cereais, particularmente do trigo, seu principal produto de exportação desde tempos imemoriais, a importação de fertilizantes, a indústria moageira, a proximidade da estação dos caminhos de ferro e armazéns correlatos à actividade de comercialização e transporte, a oportunidade de trabalho que tais actividades proporcionavam e o funcionalismo adstrito ao próprio funcionamento dos transportes ferroviários, tudo isto fará com que, paulatinamente, ao longo da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século passado, as Alcaçarias sofressem um processo de crescente urbanização. A cidade rompia enfim, de forma significativa, com os muros medievais e à tortuosidade da malha urbana do centro histórico sucediam-se agora ruas delineadas de forma racional, geométrica, intersectando-se em malha. As ruas estruturantes do novo bairro, Rua Tenente Sanches de Miranda, Rua Tenente Valadim e Rua Coronel Brito Pais correm paralelas à via férrea, tal a influência que a mesma imprimiu à tessitura urbana.
O processo de urbanização foi coincidente com as campanhas de “conquista e pacificação” conduzidas em territórios de Angola e Moçambique. Viviam-se então os desígnios de construção de novos brasis em África e a causa colonial tinha uma aura popular. E uma plêiade de heróis surgiu, ligados às campanhas militares e às viagens de exploração e demarcação dos territórios africanos.
Alguns deles, como seria expectável, deram nome às ruas do novel bairro.
Eduardo António Prieto Valadim foi um desses heróis. A 6 de Outubro de 1889 partiu numa missão militar, para terras de Quelimane e do lago Niassa, que visava consolidar a presença portuguesa nesses territórios, acompanhado pelo aspirante Manuel Tomás de Almeida, alguns efectivos militares indígenas e 250 carregadores. Depois de seis dias de marcha, a expedição chegou ao povoado de Pegogo, onde o régulo Mataca a todos acolheu de forma hospitaleira, tendo sido combinado proceder à cerimónia do hastear da bandeira portuguesa, em sinal de soberania, na manhã seguinte, por se aproximar o pôr-do-sol.
No dia imediato, pelas 7 horas da manhã, quando o tenente Valadim, o aspirante Manuel Tomás de Almeida e o criado José procediam ao hastear da bandeira nacional, alguns dos homens que assistiam à cerimónia tentaram derrubá-la, ao que os militares portugueses se opuseram com firmeza. O régulo Mataca, entretanto chegado com um numeroso grupo armado, atacou as forças portuguesas e na refrega, o próprio Mataca terá decepado a cabeça do tenente Valadim. O aspirante Tomás Almeida, o criado José, as tropas indígenas e os carregadores mais velhos foram aprisionados e sujeitos a sevícias antes de serem degolados. Os restantes africanos foram escravizados.
Quando, meses depois, a notícia chegou a Portugal, foi grande a indignação e o reavivar dos sentimentos de hostilidade contra os britânicos, a cujas intrigas era atribuído o morticínio, sentimentos patrióticos já exacerbados pela humilhação resultante da cedência ao ultimato britânico de 11 de janeiro de 1890. Por todo o lado se repetiram as manifestações de desagravo.
Porque a Câmara Municipal de Lisboa deliberou dar o nome de Tenente Valadim a uma das ruas da cidade, a imprensa da época promoveu uma campanha para que o acto fosse repetido em todas as cidades e vilas, o que levou a que o exemplo se tivesse  propagado, sendo ainda hoje o topónimo Tenente Valadim um dos mais comuns em Portugal, estando presente em 34 localidades. A Rua Tenente Valadim era a mais extensa das antigas ruas de Beja, tendo o seu princípio junto da antiga Rua do Pelame e vindo a desembocar nas Portas de Moura.
Aníbal Augusto Sanches de Sousa de Miranda, que também deu nome a rua, foi coronel de Artilharia e Governador de Macau, de 14 de Julho de 1912 a 10 de Junho de 1914. Foi companheiro de Mouzinho de Albuquerque e estiveram juntos em Chaimite, no acto de aprisionamento de Gungunhana, rei dos Vátuas.
Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque, outro dos contemplados na toponímia local, foi oficial de Cavalaria, protagonizou a captura do imperador Nguni Gungunhana, em Chaimite (1895), e conduziu campanhas de pacificação das populações locais e de conquista e subjugação dos territórios que viriam a constituir o actual Moçambique. Para além de brilhante figura militar, herói de Chaimite e de Gaza, foi ainda um notável administrador colonial.
Mas o espírito do tempo não deixou marcas apenas na toponímia, também na arquitectura esse legado é visível, como é manifesto na casa que faz esquina entre as ruas Tenente Valadim e Coronel Brito Pais. Casa de traça vagamente colonial muitas vezes lhe ouvi chamar “casa da palmeira”, pois possuía no quintal uma palmeira de grande porte, o que lhe acentuava ainda mais o seu ar tropical.
Nesta casa habitou durante longos anos António Gonçalves Correia, figura singular que, com as suas longas barbas e cabeleira a cair-lhe pelas costas, era, em todo o distrito, de todos sobejamente conhecido, até pela profissão que exercia, caixeiro-viajante. Com o seu ar profético, tolstoiano, era homem de espírito livre, socialista utópico, adepto dos ideais anarco-sindicalistas, o que lhe trouxe bastos problemas com o jacobinismo da 1.ª República e depois, inevitavelmente, com o regime ditatorial.
A "Casa da Palmeira", onde viveu António Gonçalves Correia
Há cerca de uma década atrás, quando se procedia a obras no interior da casa, cuja construção data dos anos 20 do século passado, o derrube de uma parede ocasionou a queda em cascata de livros que se encontravam ocultos desde data que não se sabe precisar. Trata-se de um opúsculo, de 26 páginas, da autoria de Gonçalves Correia, que tem como título “A Felicidade de todos os seres na Sociedade Futura” e como subtítulo “Conferência realizada no V Congresso dos Trabalhadores Rurais, no Teatro Garcia de Rezende, em Evora, no dia 16 de Dezembro de 1922”. É uma segunda edição, com uma tiragem de 3,000 exemplares, impressa em Beja, na Tipografia Porvir, no ano de 1931. Numa visão profética, mais de crente do que de ideólogo, Gonçalves Correia antevê nesse opúsculo o futuro promissor da humanidade, alicerçado na ciência, na técnica, no trabalho, na educação, no findar da propriedade privada, fonte de todos os males, e no surgimento de um homem novo, educado segundo os princípios da fraternidade e da justiça social. A linguagem é grandiloquente, com laivos literários e rasgos teatrais, por vezes eivada de um profundo lirismo, tudo tão próprio à arte oratória da época. A forma como expressa a crença absoluta no progresso que a máquina, as novas tecnologias, as novas formas de produção inevitavelmente trarão, lembra a “Ode Triunfal” de Alberto Caeiro. Diz-nos Gonçalves Correia: “(…) Que extraordinária diferença existe entre o trabalho braçal, que torna o homem escravo, e o trabalho da máquina, que torna o homem feliz! Ah! Grandiosa lei do trabalho justo, que edifica túneis, que ergue pontes, que rasga canais, que constroe linhas de caminhos de ferro, que põe comboios a funcionar, que faz o milagre mirabolante da alegria!”
“Eia, homem de lúcida inteligência do meu século! Eia, maquinária bendita que á pobre humanidade sofredora trarás, enfim, a fartura de alimentos, de vestuário, de habitações risonhas, de mil e um objectos de prazer! Salvé, simpáticos engenheiros, livres de preconceitos e de vaidades lamentáveis, trabalhando em intima comunhão com o proletário rude, na edificação duma obra intensa de amor e paz!”
Por longos anos permaneceu o opúsculo emparedado. Acossado pela ameaça do confisco o autor salvaguardou e legou assim a sua obra. Tempos ignominiosos que obrigavam a tais procedimentos. Anote-se que Gonçalves Correia, nascido em São Marcos da Ataboeira, concelho de Castro Verde, em 3 de Agosto de 1886, e falecido em Lisboa em 20 de Dezembro de 1967, era um autodidacta.
As Alcaçarias nasceram com o embalo dos novos tempos, marcados pelo surgimento de um novo mundo fundado na ciência, na tecnologia, na indústria e no trabalho de um novo proletariado. É irónico que um opúsculo que celebrava esses novos tempos tenha permanecido emparedado por longos anos numa casa do bairro, como voz e símbolo apenas ocultos, não silenciados.

 

 

 




[1] Cf. Joaquim Filipe Mósca, “João de Deus e a Imprensa baixo-alentejana”, in Diário do Alentejo, Ano LXIV, n.º 717 (II Série) de 19 a 25 de janeiro de 1996, pp. 14-15.
[2] Cf. Manuel L. Casteleiro de Góis, Beja – Roteiro Toponímico da Cidade: Centro Histórico e Arrabaldes Antigos (Séc. XIV – Séc. XX), ed. do autor, 2019, p. 13.
[3] Cf. idem, ibidem, p. 13.
[4] Cf. Domingos Vieira, Grande Diccionario Portuguez ou Thesouro da Lingua Portugueza, 1.º Vol., Porto, Ernesto Chadron e Bartholomeu H. de Moraes, 1871, p. 273. Disponível em https://catalog.hathitrust.org/Record/100188000. Consultado em 28/07/2020.
 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

BEJA NAS CAMPANHAS MILITARES LIBERAIS - O 9 DE JULHO DE 1833

Livro de Vereações da Câmara Municipal de Beja de 1640

A SINAGOGA DE BEJA