A RUA DO CATIVO
A propósito da Rua do Cativo, actual Rua
Capitão João Francisco de Sousa
A toponímia é reflexo da história local e
é, por isso, bastas vezes, símbolo das opções político-sociais e dos valores religiosos,
éticos e cívicos que enformam uma comunidade em diferentes contextos
históricos. Posto isto, convenhamos que alterar a toponímia é bulir com a
história local, apagá-la, adulterá-la. A cedência fácil às conjunturas
políticas, a sua glorificação e legitimação, têm fatalmente conduzido a
alterações toponímicas as mais das vezes reprováveis e nefastas para a memória
local. À toponímia sedimentada pelo tempo, sucede-se uma onomástica ditada pela
moda e pelo contexto político-ideológico prevalecente a cada momento. Se tal se
justifica em momentos de ruptura histórica, será, contudo, de evitar a troca de
um nome que a história local fixou e legitimou por um epónimo de duvidosa ou
fugaz relevância. Tal prática devia, pois, cingir-se aos locais e ruas
anepígrafos.
Vem o
intróito a propósito da Rua Capitão João Francisco de Sousa, antiga Rua do
Cativo, ainda que muitas outras pudessem vir à colação. Conhecemos ainda quem
se referisse a esta Rua pelo seu antigo nome. Foi a principal artéria da baixa citadina e continua a sê-lo ainda
hoje, não obstante a decadência comercial e o despovoamento do centro urbano.
O capitão
João Francisco de Sousa, bacharel em Direito, de origem açoriana, foi oficial
do Regimento de Infantaria n.º 17. Morreu em combate em Angola em agosto de
1915, no decurso das campanhas militares contra os exércitos alemães na
fronteira sul da então colónia.[1]
A primeira referência à Rua do Cativo encontrámo-la no Livro do Quatro e Meio por Cento datado do ano de 1730.[2]
E o
cativo, quem seria? Eis a nossa proposta, que cremos dotada de alguma
plausibilidade.
Em 29 de
dezembro de 1627, compareceu na Câmara de Beja Francisco Fialho Guedes, o qual
requereu que, em virtude de uma carta de Sua Majestade, datada de 25 de junho de
1626, lhe fosse dada posse do ofício de escrivão da Câmara. Constituíam o
senado camarário o juiz de fora Dr. Vasco Anes de Castelo Branco, os vereadores
António Pais Viegas, Paulo Machado Rebelo e João de Aboim Pereira e o
procurador do Concelho Dr. Francisco Cepa Mergulhão. Dizia a supracitada carta
que D. Filipe II, por alvará datado de 6 de setembro de 1609, tinha concedido a
Manuel Cardoso, escrivão da Câmara da dita cidade, a capacidade de, em sua
vida, poder renunciar o dito ofício na pessoa que casasse com uma de suas
filhas, por ele o haver servido com satisfação perto de 30 anos e, tendo sido
feito cativo na Batalha de Alcácer Quibir, se ter resgatado à sua custa. O
supracitado alvará, contudo, não podia ter efeito por 2 das suas 3 filhas serem
freiras professas e a terceira estar casada com Rui Brandão, que não queria
servir o dito ofício, e que, por essa causa, pretendia o dito Manuel Cardoso
renunciar no impetrante, Francisco Fialho Guedes. Era este filho de Francisco
Fernandes Fialho, juiz dos órfãos da cidade de Évora, o qual tinha feito
petição, invocando os seus serviços, para que Sua Majestade reconfirmasse a
dita renunciação em seu filho, petição que foi aceite, tendo também em conta
informação que se houve pelo corregedor da Comarca eborense. Pelo que ordenava
Sua Majestade aos oficiais do senado pacense que apresentando-lhes “Francisco
Fialho a dita renunciação, e o Alvará de seis de Setembro de mil e seiscentos e
nove de que se trata, o examineis, e sendo apto e não tendo impedimento algum
para haver de servir o dito ofício lhe fareis passar carta em forma dele,
pagando primeiro os direitos ordenados…”.[3]
Francisco
Fialho Guedes foi empossado como escrivão proprietário, em substituição de
Manuel Cardoso, em vereação realizada em 29 de dezembro de 1627.[4] A última
evidência documental sobre a presença do mesmo nas vereações camarárias remonta
a 22 de julho de 1659.[5]
Manuel
Cardoso teve também uma longa carreira como escrivão camarário. Foi empossado
ainda no século anterior, em data que não sabemos precisar, e terminou a sua
carreira em 1627. Feito cativo na batalha de Alcácer-Quibir (4 de agosto de
1578) remiu-se a si próprio do presídio em data que ignoramos. O privilégio de
poder renunciar o ofício de escrivão na pessoa que casasse com uma das suas
filhas, o que na prática convertia o ofício em dote, está datado de 6 de
setembro de 1609. Esta capacidade é-lhe conferida por haver servido o poder
real, com satisfação, cerca de 30 anos, o que faz com que o começo desses
serviços remonte aos anos de 1578-1579.
O
ofício de escrivão era, em grande parte dos concelhos dependentes da coroa, de
provimento trienal pelo Desembargo do Paço, mediante proposta camarária, ou
pelo donatário nas terras senhoriais, como ocorria em Beja após o ano de 1654,
com a criação da Casa do Infantado, de que Beja era cabeça. Na maior parte das povoações, incluindo Gouveia, Santarém,
Abrantes, Coimbra, Tomar, Montemor-o-Novo, Estremoz e Évora, a partir de finais
de quinhentos era o provimento do escrivão vitalício, o que, na prática, o
tornava geralmente hereditário.[6]
Também em Beja o ofício adquiriu características de hereditariedade, ao longo
dos séculos XVII e XVIII, ainda que a sua posse pela mesma família nunca tenha
ultrapassado as 4 gerações.
O estatuto
conferido pelo exercício da função de escrivão da Câmara, bem como os elevados
proventos que proporcionava, tornavam-no um ofício apetecível em torno do qual
se podiam tecer acesas disputas. Sendo dado a título de propriedade, assumia
carácter hereditário e podia ser vendido, arrendado ou até legado como dote. O
seu proprietário podia, pois, dispor dele como de uma qualquer outra fonte de
rendimento.
Manuel
Cardoso exercitou o ofício de escrivão da Câmara por longo tempo. Era o mais
preeminente e o mais bem remunerado de todos os ofícios camarários, pelo que o
seu desempenho conferia notoriedade social e influência política. Porque era
dado a título de propriedade isso tornava-o, de algum modo, imune a eventuais
pressões políticas por parte da oligarquia local, a quem estava reservado o cargo
de vereador. À sua qualidade de escrivão da Câmara Manuel Cardoso juntava ainda
a glória de ter participado na funesta campanha militar de Alcácer Quibir e,
tendo sofrido as agruras do cativeiro, lograra remir-se a si próprio. Era uma
notoriedade local, cuja memória era suficientemente impressiva para lograr
perpetuidade na toponímia local.
Provavelmente
viveu na rua à qual emprestou o nome da sua condição de prisioneiro de guerra. Mas
nada podemos afirmar em definitivo. Talvez que a resposta final se encontre algures
entre os milhentos papéis que povoam alguns quilómetros de estantes do nosso
Arquivo Histórico-Municipal, à espera de quem a desencante.
Bibliografia
Fontes manuscritas
Livro do Quatro e
Meio por Cento,
PT/ADBJA/AL/CMBJA/F-A/002/0074
Livro de Registo
de Leis, Provisões, Alvarás, PT/ADBA/AL/CMBJA/A/001/0004
AHMB, CMB - B/A-01 - Lvº 72, Cx. 11.
Estudos
FONSECA,
Teresa, “O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e práticas
administrativas”, in Mafalda Soares
da Cunha & Teresa Fonseca (ed.), Os
Municípios no Portugal Moderno – Dos forais manuelinos às reformas liberais,
Lisboa, Edições Colibri-CIDEHUS / EU – Centro Interdisciplinar de História,
Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, 2005.
GOES,
Manuel Lourenço Casteleiro de, Roteiro
Toponímico da Cidade – Centro Histórico e Arrabaldes Antigos (Séc. XIV – Séc.
XX), ed. do autor, 2019.
[1] Cf. Manuel Lourenço Casteleiro de
Goes, Roteiro Toponímico da Cidade –
Centro Histórico e Arrabaldes Antigos (Séc. XIV – Séc. XX), ed. do autor,
2019.
[2] Cf. Livro do Quatro e Meio por Cento, PT/ADBJA/AL/CMBJA/F-A/002/0074,
fl. 58vº.
O imposto denominado por quatro e meio por cento, ou décima, conforme o período histórico,
era da responsabilidade das Câmaras. A definição do rendimento colectável dos
moradores, sobre o qual incidia o imposto, era definido pelos fintores, eleitos pelo senado municipal,
o que lhes conferia um poder discricionário e clientelar.
O imposto da décima foi criado por D. João IV a fim de custear a Guerra da
Restauração; findas as hostilidades (1668) a décima foi reduzida para 4,5%. Durante a Guerra da Sucessão de
Espanha (1701-
-1714) foi reposta a décima para, em 1715, regressar de novo aos 4,5%. Por alvará de 26 de setembro de 1762 passou definitivamente a décima e modificou-se o seu regime de cobrança, com a criação de uma Superintendência Geral das Décimas e uma estrutura de cobrança baseada em funcionários régios.
[3] Cf. Livro de Registo de Leis, Provisões, Alvarás, PT/ADBA/AL/CMBJA/A/001/0004, fls. 192-193.
-1714) foi reposta a décima para, em 1715, regressar de novo aos 4,5%. Por alvará de 26 de setembro de 1762 passou definitivamente a décima e modificou-se o seu regime de cobrança, com a criação de uma Superintendência Geral das Décimas e uma estrutura de cobrança baseada em funcionários régios.
[3] Cf. Livro de Registo de Leis, Provisões, Alvarás, PT/ADBA/AL/CMBJA/A/001/0004, fls. 192-193.
[4] Cf. idem, ibidem.
[6] Cf. Teresa
Fonseca, “O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e práticas
administrativas”, in Mafalda Soares
da Cunha & Teresa Fonseca (ed.), Os
Municípios no Portugal Moderno – Dos forais manuelinos às reformas liberais,
Lisboa, Edições Colibri-CIDEHUS / EU – Centro Interdisciplinar de História,
Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, 2005, p. 77.
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