JUDEUS E CRISTÃOS-NOVOS EM BEJA
A proposta de alteração da lei que concede
a nacionalidade portuguesa aos judeus sefarditas que provem a sua ascendência
portuguesa tem provocado acesa polémica e dividiu mesmo a família socialista,
de onde partiu a dita alteração, proposta pela deputada Constança Urbano de
Sousa. Recorde-se que os ex-presidentes Mário Soares e Jorge Sampaio foram
apoiantes de primeira hora da referida lei, como forma de reparação histórica e
moral a uma comunidade de portugueses expulsa do território pátrio por motivos
religiosos, mais do que étnicos. A presença de judeus sefarditas em território
português é anterior à própria fundação da nacionalidade e antecede a invasão
muçulmana, ocorrida em 711. Jorge Sampaio é, ele próprio, descendente de judeus
sefarditas que regressaram ao país após a sua expulsão, ocorrida nos finais do
século XV.
A Península Ibérica era nomeada em
hebraico por Sefarad, daí se designarem por sefarditas os judeus de
proveniência ibérica.
Possuiu Beja o seu bairro judeu, cujo
núcleo era a Rua da Guia, antiga Rua das Tripeiras. A Judiaria era delimitada
pela muralha do castelo, Travessa da Guia, Rua do Sarilho e Rua de São Gregório.
Lográmos encontrar uma referência
documental à existência de uma sinagoga em Beja, em livro de actas, então
designadas por termos, da Câmara de Beja, datado de 1637, a propósito da doação
de um espaço público a Sesinando de Seixas Freire, residente na cidade,[1] para que o murasse e nele
fizesse um quintal. No documento, denominado por “Carta de Chão” se declarava
que o supradito havia feito uma petição por escrito “dizendo em ella que
detras das suas Cazas ao Poço do Ouro estaua hũ pequeno de cham deuoluto deste
Concelho e parte cõ outro chão e quintal delle supplicante, o qual queria
aleuantar e amurar, e fazer de tudo hũ quintal, e por o ditto chão do Concelho
ser couza de pouca cõsederaçam, e não ter a Camara delle prouejto algum, e
fazia roim uezinhãsa has suas cazas em respeito de esterquejra e immundicias
que nelle se lançauam o qual cham da parte da Rua tem oito uaras e meja e da
parte da trauessa da banda da asnoga noue uaras e meja que foram medidas por
Manoel Gago porteiro desta Camara de que deu sua fe dizendo que
serteficaua, e era uerdade que elle fora medir o chão contheudo na petiçam do
supplicante e nelle achara as sobredittas uaras pellas dittas partes assima
declaradas (…).[2]
Tinha o chão da parte da travessa da banda
da asnoga nova varas e meia.[3] Asnoga, ou esnoga, era a
designação antiga para sinagoga. E eis que quase um século e meio após a
expulsão da comunidade judaica ainda permanecia no imaginário dos bejenses de
então a existência de um templo judaico situado intramuros.
O Poço do Ouro, hoje soterrado,
encontrava-se ao cimo da Travessa Fundo, na confluência desta com a Rua de São
Gregório. A casa senhorial onde hoje se acha instalada a Mansão de São José
seria, porventura, a moradia do impetrante, Sesinando de Seixas Freire. É,
pois, de presumir que a Travessa Funda fosse a citada Travessa da Asnoga, a
qual desemboca na Rua da Guia, coração do bairro judeu, onde, provavelmente, se
situaria a sinagoga.
Há alguns anos o jornal “Público”, em data
que não sabemos asseverar, publicou um conjunto de reportagens sobre comunidades
judias sefarditas de origem portuguesa espalhadas pelo mundo, desde a ilha do
Curaçau até à Turquia. Muitas dessas comunidades conservavam a memória da sua pertença
à comunidade lusíada e alguns dos seus membros eram ainda capazes de se
expressar em “ladino”, língua falada pelos judeus ibéricos, mescla de
castelhano e português. Numa das reportagens contava-se que um judeu residente
em Istambul – muitos judeus portugueses refugiaram-se no então Império Otomano
– atemorizado com o curso dos acontecimentos decorrentes da II Guerra Mundial,
procurou refúgio em Itália. Também aí se sentiu inseguro, dada a cumplicidade
existente entre o fascismo italiano e o regime nazi. Decidiu então ir procurar
refúgio na América, como tantos milhares o fizeram. Ao fazer escala em Lisboa,
de viagem para o seu novo destino, terá dito: “Finalmente, estou de novo em
casa.” Trazia no bolso a chave da casa onde os seus longínquos antepassados
tinham residido. Essa casa era em Beja.
A expulsão dos judeus de território
português concretizou-se através de decreto real ordenado por D. Manuel I nos
finais do ano de 1496, que os obrigava a sair do País até Outubro do ano
seguinte. Caso o não fizessem seriam condenados à morte e os seus bens
confiscados a favor da coroa. Alertado para o grave prejuízo económico que tal
expulsão acarretaria, pela grande fuga de capitais, o rei procurou então reter
os judeus no País, ordenando que aqueles que se
convertessem ao cristianismo poderiam permanecer. O prazo para o baptismo dos
convertidos era a Páscoa do ano seguinte, 1497.
Um número indeterminado de judeus convertidos
permaneceu no País. Graves dissabores os esperavam.
Fundada em 1536, no reinado de D. João III, por acordo
celebrado com o Papa Paulo III, a Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício
perseguiu, julgou e puniu com cruel severidade as alegadas práticas judaizantes
a que se dedicariam os judeus convertidos, os denominados cristãos-novos.
De entre
os sentenciados na fogueira pela Inquisição, Borges Coelho, na obra Inquisição de Évora, (Dos Primórdios a 1668),
menciona Heitor de Brito Godins, membro da nobreza bejense, acusado de judeu e
sem fazenda.[4]
A ser o supracitado Heitor de Brito
familiar dos Brito Godins, e tendo sido sentenciado em auto-de-fé em
19/09/1625, foi o dito filho de Manuel de Brito Godins e irmão de Pedro de
Brito.[5] Em 1620/21 foi irmão de
primeira condição da Misericórdia de Beja.[6]
Conforme o sumário descritivo do Proc.
6684 da Inquisição de Évora, Heitor de Brito era natural e residente em Beja,
filho de Manuel de Brito e de Isabel de Mendonça. Acusado de judaísmo,
apostasia e heresia, foi preso em 04/07/1625 e sentenciado em auto-de-fé em
19/09/1625.
No rol nominal dos processos
inquisitoriais disponibilizado pelo Arquivo Nacional-Torre do Tombo, ANTT, de
entre os sentenciados pela Inquisição de Évora achei os seguintes processos
respeitantes a naturais e residentes em Beja:
Proc.
2886
Diogo Raposo Chanoca, viúvo de Maria
Freire de Carvalhal, natural e residente em Beja, tabelião de notas e
proprietário, acusado de heresia e apostasia. Filho de Francisco Raposo
Chanoca, proprietário, e de Leonor dos Anjos. Saiu em liberdade em 23/11/1723;
Proc.
1664
Francisco Raposo de Carvalhal, natural de
Beja, alferes de cavalos no Regimento de Arraiolos, acusado de judaísmo. Filho
de Diogo Raposo Chanoca e de Maria Freire do Carvalhal. Faleceu no Hospital
Real de Lisboa em 05/08/1723, não se encontrando em seu perfeito juízo. Pai e
filho, um sai em liberdade, o outro falece no Hospital Real de Lisboa,
enlouquecido. O sumário do processo não informa sobre a causa da insanidade;
Proc.
4467
Manuel Alfar, casado, sapateiro, natural
de Beja, acusado de judaísmo. Filho de Francisco Rodrigues e de Sebastiana
Cruz. Apresentado em 3/03/1668;
Proc.
2436
Francisco Rodrigues Alfar, natural e
residente em Beja, meirinho da auditoria. Saiu em liberdade em 17/12/1723;
Proc.
1495
António Bocarro, casado, lavrador, natural
de Beja, acusado de judaísmo, apostasia e heresia. Filho de Manuel Lopes e de Ana
Bocarra. Sentenciado em auto-de-fé em 7/11/1640;
Proc.
4124
Maria Bocarra, solteira, natural e
residente em Beja, filha de Manuel Lopes e de Ana Bocarra. Acusada de judaísmo,
apostasia e heresia. Presa em 21/10/1625 e sentenciada em auto-de-fé em 01/04/1629.
A ré foi admoestada várias vezes por omitir culpas; foi absolvida de excomunhão
e mandada para Beja para cumprir pena;
Proc.
6568
Maria Bocarra, casada, 20 anos de idade,
natural e residente em Beja, filha de Francisco de Mateus e de Maria Noutela. Acusada
de judaísmo, apostasia e heresia. Presa em 01/04/1632 e sentenciada em
auto-de-fé em 05/03/1635;
Proc.
1925
Ana Bocarrra, casada, natural de Beja,
acusada de judaísmo, apostasia e heresia. Filha de Miguel Pereira de Lacerda e
de Inês Lopes de Bom dia. Sentenciada em auto-de-fé em 9/11/1626. Dos Bocarro
temos como certo que António Bocarro e Maria Bocarra (proc. 4124) são irmãos. É
de presumir que os restantes Bocarro, Maria Bocarra e Ana Bocarra, sejam seus
familiares, dada a proximidade temporal dos processos inquisitoriais e serem
todos naturais de Beja. Neste caso o elemento feminino é maioritariamente
visado pela perseguição inquisitorial;
Proc.
2638
Maria Cochilha, casada, natural de Beja,
acusada de apostasia, heresia e judaísmo. Filha de Brás Dias e de Isabel Jorge.
Em 27/07/1628 foi-lhe mandado tirar o hábito e levantar o cárcere;
Proc.
272
João de Góis Cochilha, cristão-novo,
casado com Branca Nunes, de 46 anos de idade, natural e residente em Beja,
comerciante, filho de Luís de Góis, curtidor, cristão-
-novo, e de Leonor Mendes, parte de cristã-nova. Acusado de judaísmo. Preso em 20/11/1720 e sentenciado em 21/10/1723. Absolvido na Sala do Santo Ofício e levantado o sequestro de bens. Antes de ser preso pela Inquisição de Lisboa já tinha sido preso pela Inquisição de Évora em 22/10/1720;
-novo, e de Leonor Mendes, parte de cristã-nova. Acusado de judaísmo. Preso em 20/11/1720 e sentenciado em 21/10/1723. Absolvido na Sala do Santo Ofício e levantado o sequestro de bens. Antes de ser preso pela Inquisição de Lisboa já tinha sido preso pela Inquisição de Évora em 22/10/1720;
Proc.
9404
António Dias Cochilha, solteiro, natural e
residente em Beja, advogado, filho de Luís de Góis e de Leonor Mendes. Acusado
de judaísmo, heresia e apostasia. Foi preso em 28/10/1720. Desconhece-se a data
da sentença.
João de Góis Cochilha e António Dias
Cochilha, irmãos, cristãos-novos, presos pela Inquisição de Évora em datas
muito próximas. Em todos os sumários de processos consultados o referente a
João de Góis Cochilha é o único que refere a sua condição de cristão-novo;
Proc.
5023
Brites Soares Azeitada, também conhecida
por Brites Brava ou Brites Azeitada, casada com Manuel Mestre Cochilha,
lavrador, natural de Beja, acusada de judaísmo, heresia e apostasia. Filha de
Estêvão Bravo, lavrador, e de Mor Azeitada. Foi mandada sair dos cárceres em
14/08/1630 para ir cumprir a penitência em Beja;
Proc.
5214
Bartolomeu Azeitado, escrivão das sisas,
natural de Beja, acusado de perjúrio e falsidade. Por provisão de 02/01/1574 o
degredo que o réu estava a cumprir em Tânger foi interrompido;
Proc.
5185
Baltasar Lopes Cardoso, viúvo de Graça
Lopes, natural de Beja, licenciado, acusado de Judaísmo, heresia e apostasia.
Sentenciado em 10/05/1567: o réu não podia sair do Reino sem licença do Santo
Ofício;
Proc.
2062
Fernão Lopes Cardoso, casado com Brites
Pinta, natural de Beja, proprietário, filho de Rui Lopes, proprietário, e de
Brites Dias. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. Preso em 09/05/1619 e
sentenciado em auto-de-fé em 14/05/1623. Em 21/07/1623 foi cumprir penitência
para Beja; foi-lhe tirado o hábito e levantado o cárcere e comutado para penas
espirituais m 18/04/1625;
Proc.
5803
Diogo Lopes Cardoso, solteiro, natural e
residente em Beja, filho de Belchior Lopes Cardoso e de Leonor Gomes. Acusado de
judaísmo, heresia e apostasia. Preso em 21/05/1623 e sentenciado em auto-de-fé
em 19/10/1625. Por omitir culpas e nomes de pessoas foi atormentado e ameaçado
com o relaxo à justiça secular; em 15/12/1625 foi mandado para Beja para acabar
de cumprir a penitência;
Proc.
3229
Belchior Lopes Cardoso, casado com Leonor
Gomes, natural de Beja, lavrador e mercador de trigo. Acusado de judaísmo,
heresia e apostasia. O réu suicidou-se antes de dar entrada nos cárceres do
Santo Ofício; foram citados os filhos e herdeiros para defenderem a honra e a
fama, provando-se que o réu se encontrava fora do seu juízo, pelo que foi
absolvido.
O sumário do processo não indica qualquer
data;
Proc.
2327
Gaspar Lopes Cardoso, solteiro, natural de
Beja, bacharel em leis, filho de Rui Lopes Cardoso e de Brites Dias. Acusado de
judaísmo, heresia e apostasia. Preso em 14/04/1620 e sentenciado em auto-de-fé
em 14/06/1624: o réu morreu nos cárceres da Inquisição em 22/05/1621.
Particularmente visada pela Inquisição foi
a família Lopes Cardoso, no primeiro quartel do séc. XVII.
Fernão Lopes Cardoso, proprietário, é
irmão de Gaspar Lopes Cardoso, bacharel em leis, ambos filhos de Rui Lopes,
proprietário, e de Leonor Gomes.
Diogo Lopes Cardoso é filho de Belchior
Lopes Cardoso, lavrador e mercador de trigo, e de Leonor Gomes.
Também Baltasar Lopes Cardoso, sentenciado
no século antecedente, era licenciado;
Proc.
5447
Pedro Fernandes Magro, casado com Lourença
de Mercês, natural e residente em Beja, proprietário que vivia de sua fazenda,
filho de Brás Afonso Magro e de Catarina Dias. Acusado de judaísmo, heresia e
apostasia. Apresentado em 18/04/1668 e sentenciado em 08/10/1679: foram
extraídas culpas contra o réu, entre outros, dos processos de seus primos. O
réu denunciou, além de outros, seu irmão, Brás Afonso, e os parentes já
citados. Foi absolvido das penas de excomunhão maior e de confisco de bens;
Proc.
4343
João Magro, casado com Maria Penha,
natural de Beja e residente em Serpa, sapateiro, filho de Manuel Rodrigues
Barque e de Joana Baptista. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia.
Apresentado em 30/08/1669, abjurou em 17/12/1674, tendo então 27 anos; saiu em
liberdade em 19/12/1674;
Proc.
6815
André Rodrigues Magno ou André Rodrigues
Magro, casado com Paula Fernandes, natural e residente em Beja, rendeiro,
sirgueiro e tratante, filho de Manuel Rodrigues Barque, sirgueiro e de Fernanda
Baptista. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. Apresentado em 03/06/1669,
foi ouvido em 03/11/1676 e abjurou em 04/11/ 1676; foi mandado sair em liberdade
em 05/11/1676;
Proc.
9191
José Soares Magro, solteiro, natural e
residente em Beja, advogado, filho de Manuel Magro, que vivia de sua fazenda, e
de Leonor Cordeira. Acusado de apostasia e heresia. Foi preso em 19/10/1720 e
sentenciado em 23/11/1723. No inventário de 22/11/1720 disse ser filho-família,
não possuindo quaisquer bens. Teve libelo, que contestou. Em 23/11/1723 foi-lhe
passado termo de ida e de segredo;
Da família Magro temos como certo que João
Magro e André Rodrigues Magno, ou Magro, eram irmãos, ainda que o sumário dos
processos refira Joana Baptista como mãe do primeiro e Fernanda Baptista como
mãe do segundo.
Conclusão
Para além do presumível Heitor de Brito
Godins, membro de família pertencente à nobreza local e que ao longo de séculos
esteve ligada à governança da Cidade, não detectámos, no confronto com os
documentos, quaisquer outros membros da oligarquia local que tenham
sido objecto de perseguição inquisitorial. Os Pegas de Beja, Rebelo de Macedo,
Seixas Machado, Sousa de Castelo-Branco, Rebelo Machado, Brito de Andrade,
Freire de Andrade, Carvalhal Freire, Aboim Pereira, Bocarro Pegas, Estaço de
Negreiros, Brito de Carvalhal, Seixas Freire, Alcoforado e outros, que
asseguravam, numa feição oligárquica, as vereações camarárias, o oficialato das
ordenanças e a provedoria da Misericórdia, estão ausentes do rol dos
sentenciados pela Inquisição de Évora.[7] O seu estamento social
concedia-lhes imunidades e privilégios e a sua linhagem abonava-os como limpos
de sangue, para o que concorria uma reprodução de cariz endogâmico, para além
de que eram eles os grandes beneficiários de uma ordem social, religiosa,
económica, política e cultural cuja alteração redundaria sempre em seu
prejuízo.
Havia, ainda, uma aproximação às
estruturas inquisitoriais através da obtenção do grau de familiar do Santo
Ofício. Pela preeminência da fronteira entre cristãos-novos e cristãos velhos
constituía tal estatuto uma distinção muito procurada.[8] De aparelho persecutório e
repressivo tornara-se também a Inquisição promotora de distinção e prestígio
social.
“(…) o sangue, não
só funcionava como uma referência biológica, moral e metafórica, como impunha
as classificações estamentais, determinava as sociabilidades e ultrapassava o
domínio do parentesco para se transformar em princípio de classificação sócio-cultural.”[9]
A aversão à novidade e ao arbítrio, pelo
menos até ao final da segunda metade do século XVIII, era característica da
cultura política coeva. A heresia era sempre uma disrupção da ordem vigente;
extraordinário seria, pois, que os seus guardiães fossem a ela atreitos.
Félix Caetano da Silva, em finais do
século XVIII, esclarece-nos acerca da gente da governança citadina:
“(…) De alguns livros da historia do Reino, e de outras
memorias particulares e manuscritas consta que a governança de Beja no senado
da Camara da mesma andou sempre de tempos muito antigos na principal fidalguia
e nobreza que tanto naquelles tempos illustraram esta cidade com as famílias
que nella residiram. Taes foram as famílias distinctas:
Mafaldos, Bejas, antigos e modernos, Lobos Raposos, Raposos,
sómente, Sequeiras, Castros, Britos, Barretos,
Bocarros, Pachecos, Villarinhos, Pegas Bejas, Paes Viegas, Machados, Rebelos,
Machados Sacotos, Carvalhaes, Gagos, Limas, Gouvêas, Oliveiras Azevedos,
Oliveiras, sómente, Godins Patos, Britos Godins, Godinhos, Farias, Pereiras,
Lacerdas, Rebelos Macedos, Cardosos Torneos, Gaviães, Castel Brancos, Estaços
Negreiros, Sampaios, Castanhedas, Sousas, Britos e Andradas, Brandões Limas,
Seixas, Soares.
E muitas outras mais que antigamente residiram nesta cidade,
e a enobreceram; não cedendo nesta parte vantagem a muitas outras deste reino.”[10]
Quem são, pois, os perseguidos, os
heréticos e os seus familiares, qual o seu estatuto social?
Da amostragem por nós atrás referenciada
constatamos que, entre sentenciados e respectivos pais, têm os seguintes
estatutos sociais:
-homens de ofício – dois sapateiros, um
curtidor, um sirgueiro;
-ligados à actividade comercial – um
comerciante, um que é lavrador e mercador de trigo, um que nos é indicado como
rendeiro, sirgueiro e tratante;
-ligados à actividade agrícola ou que têm
rendimentos próprios – um lavrador, quatro proprietários, um que vive de sua
fazenda;
-um alferes de cavalos no Regimento de
Arraiolos;
-funcionários ligados ao oficialato
municipal ou ao aparelho judicial – um meirinho, um escrivão, um tabelião de
notas que é também proprietário, três advogados, um bacharel em leis, um
licenciado.
Das mulheres sentenciadas, quatro, três
são da família Bocarro. É-nos difícil definir qual o seu estatuto social, pois
que este estaria sempre subordinado ao de seus familiares ou cônjuges. A mulher
não se autodeterminava socialmente, a não ser nos casos, esporádicos, em que
exercesse uma actividade económica, quase sempre ligada ao comércio, v.g. vendeira, padeira, pescadeira,
regateira, medideira no terreiro do trigo. Sobre as Bocarro temos, contudo, a
notação de que António Bocarro, irmão de Maria Bocarra, seria lavrador, o que
lhe concedia um estatuto social mediano.
São todos, pois, gente que não integra a
governança camarária, cidadãos de segunda condição sem estatuto de nobreza,
ligados a actividades mecânicas, ao comércio, lavoura, jurisprudência e
oficialato municipal. Não são ociosos, vivendo à lei da nobreza, condição sine qua non para ascender aos cargos
mais preeminentes e ao estamento nobre.
Os processos por nós consultados, 23 no
total, 2 respeitam ao século XVI, 15 ao século XVII e 6 ao século XVIII. E
apesar desta amostragem ser pouco significativa de um ponto de vista
quantitativo, o universo sócio-ocupacional da comunidade cristã-nova elvense,
durante o período correspondente ao reinado de D. João IV, apresenta notórias
semelhanças com o quadro por nós descrito: 10% sapateiros, 9%
mercadores/tendeiros, 8% alfaiates, 4% curtidores, 4% almocreves, 4%
médicos/cirurgiões/boticários, 6% advogados/funcionários concelhios, 17%
militares, 6% lavradores, 9% sem informação e 23% outros.[11]
Ainda na Inquisição de Évora, e dos
primórdios até 1668, “44,6% dos relaxados
são mercadores, tratantes, homens que vivem por sua fazenda, marceiros, tecelões, tintureiros, trapeiros, sirgueiros, 19,9%
alfaiates, 13,5% sapateiros (alguns são mercadores e couros e pequenos
industriais), 13% cirurgiões, médicos, advogados, boticários.”[12]
A condenação de Heitor de Brito Godins deverá,
pois, entender-se como um acto isolado, que de forma alguma tipifica quaisquer
formas de perseguição prosseguidas pela Inquisição relativamente à gente da
governança da cidade de Beja. Os seus interesses de classe, o seu estamento,
eram de todo desconformes com tal possibilidade.
[1] Sesinando de
Seixas Freire foi vereador por 6 vezes, nos anos de 1632/1633/1634/1635/1636 e
1640 e serviu de capitão de ordenanças no ano de 1639. Cf. Joaquim Filipe Mósca, Elites Urbanas e Poder local em Beja no
Reinado de Filipe III (1621-1640), Dissertação de Mestrado em Estudos
Portugueses Multidisciplinares apresentada ao Departamento de Ciências Sociais
e de Gestão/Departamento de Humanidades da Universidade Aberta, 2011, p. 63 e
p. 160. Disponível em http://hdl.handle.net/10400.2/2603.
Sesinando de Seixas Freire foi um dos presentes no
acto de aclamação de D. João, Duque de Bragança, como rei de Portugal,
realizado em 5 de Dezembro de 1640 nas Casas da Câmara de Beja, tendo assinado
o auto que a propósito se redigiu. Cf. idem,
ibidem, p. 310.
[2] Cf. AHMB, Vereações, Lvº 52, fls. 137-137vº.
[3] Uma vara equivalia,
aproximadamente, a 11 decímetros.
[4] Cf. António Borges Coelho, Inquisição de Évora (Dos Primórdios a 1668),
Vol. I, Lisboa, Editorial Caminho, 1987, p. 174.
[6] Cf. idem, ibidem, p. 177.
[7] Cf. Joaquim Filipe Mósca, op. cit., pp. 161, 167 e 187-189.
[8] Cf. Nuno Gonçalo
Monteiro, “Elites locais e mobilidade social
em Portugal nos finais do Antigo
Regime”, in Análise Social, vol. XXXII (141), 1997 (2. °), p. 362.
Disponível em http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1221841114L2pRA2hp0Wl44RL7.pdf.
[9] Cf. João Manuel Vaz Monteiro de Figueiroa Rego, “A
Honra Alheia por um Fio”. Os Estatutos de
Limpeza de Sangue no Espaço de Expressão Ibérica (sécs. XVI-XVIII), Tese de
Doutoramento apresentada à Universidade do Minho, 2009, p. 411. Disponível em http://hdl.handle.net/1822/9820.
[10] Cit. Félix Caetano da Silva,
“Vereadores da Câmara de Beja”, in
Arquivo de Beja, Vol. I, Fasc. IV, 1944, p. 337.
[11] Cf. Maria do Carmo Teixeira Pinto, Os Cristãos-Novos de Elvas no Reinado de D.
João IV, Dissertação de Doutoramento em História apresentada à Universidade
Aberta, 2003, p. 363. Disponível em http://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/2051/1/TD-MCTP.pdf
[12] Cf. António Borges Coelho, op. cit.,
p. 32.
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