JUDEUS E CRISTÃOS-NOVOS EM BEJA



 

A proposta de alteração da lei que concede a nacionalidade portuguesa aos judeus sefarditas que provem a sua ascendência portuguesa tem provocado acesa polémica e dividiu mesmo a família socialista, de onde partiu a dita alteração, proposta pela deputada Constança Urbano de Sousa. Recorde-se que os ex-presidentes Mário Soares e Jorge Sampaio foram apoiantes de primeira hora da referida lei, como forma de reparação histórica e moral a uma comunidade de portugueses expulsa do território pátrio por motivos religiosos, mais do que étnicos. A presença de judeus sefarditas em território português é anterior à própria fundação da nacionalidade e antecede a invasão muçulmana, ocorrida em 711. Jorge Sampaio é, ele próprio, descendente de judeus sefarditas que regressaram ao país após a sua expulsão, ocorrida nos finais do século XV.
A Península Ibérica era nomeada em hebraico por Sefarad, daí se designarem por sefarditas os judeus de proveniência ibérica.
Possuiu Beja o seu bairro judeu, cujo núcleo era a Rua da Guia, antiga Rua das Tripeiras. A Judiaria era delimitada pela muralha do castelo, Travessa da Guia, Rua do Sarilho e Rua de São Gregório.
Lográmos encontrar uma referência documental à existência de uma sinagoga em Beja, em livro de actas, então designadas por termos, da Câmara de Beja, datado de 1637, a propósito da doação de um espaço público a Sesinando de Seixas Freire, residente na cidade,[1] para que o murasse e nele fizesse um quintal. No documento, denominado por “Carta de Chão” se declarava que o supradito havia feito uma petição por escrito “dizendo em ella que detras das suas Cazas ao Poço do Ouro estaua hũ pequeno de cham deuoluto deste Concelho e parte cõ outro chão e quintal delle supplicante, o qual queria aleuantar e amurar, e fazer de tudo hũ quintal, e por o ditto chão do Concelho ser couza de pouca cõsederaçam, e não ter a Camara delle prouejto algum, e fazia roim uezinhãsa has suas cazas em respeito de esterquejra e immundicias que nelle se lançauam o qual cham da parte da Rua tem oito uaras e meja e da parte da trauessa da banda da asnoga noue uaras e meja que foram medidas por Manoel Gago porteiro desta Camara de que deu sua fe dizendo que serteficaua, e era uerdade que elle fora medir o chão contheudo na petiçam do supplicante e nelle achara as sobredittas uaras pellas dittas partes assima declaradas (…).[2]
Tinha o chão da parte da travessa da banda da asnoga nova varas e meia.[3] Asnoga, ou esnoga, era a designação antiga para sinagoga. E eis que quase um século e meio após a expulsão da comunidade judaica ainda permanecia no imaginário dos bejenses de então a existência de um templo judaico situado intramuros.
O Poço do Ouro, hoje soterrado, encontrava-se ao cimo da Travessa Fundo, na confluência desta com a Rua de São Gregório. A casa senhorial onde hoje se acha instalada a Mansão de São José seria, porventura, a moradia do impetrante, Sesinando de Seixas Freire. É, pois, de presumir que a Travessa Funda fosse a citada Travessa da Asnoga, a qual desemboca na Rua da Guia, coração do bairro judeu, onde, provavelmente, se situaria a sinagoga.
Há alguns anos o jornal “Público”, em data que não sabemos asseverar, publicou um conjunto de reportagens sobre comunidades judias sefarditas de origem portuguesa espalhadas pelo mundo, desde a ilha do Curaçau até à Turquia. Muitas dessas comunidades conservavam a memória da sua pertença à comunidade lusíada e alguns dos seus membros eram ainda capazes de se expressar em “ladino”, língua falada pelos judeus ibéricos, mescla de castelhano e português. Numa das reportagens contava-se que um judeu residente em Istambul – muitos judeus portugueses refugiaram-se no então Império Otomano – atemorizado com o curso dos acontecimentos decorrentes da II Guerra Mundial, procurou refúgio em Itália. Também aí se sentiu inseguro, dada a cumplicidade existente entre o fascismo italiano e o regime nazi. Decidiu então ir procurar refúgio na América, como tantos milhares o fizeram. Ao fazer escala em Lisboa, de viagem para o seu novo destino, terá dito: “Finalmente, estou de novo em casa.” Trazia no bolso a chave da casa onde os seus longínquos antepassados tinham residido. Essa casa era em Beja.
A expulsão dos judeus de território português concretizou-se através de decreto real ordenado por D. Manuel I nos finais do ano de 1496, que os obrigava a sair do País até Outubro do ano seguinte. Caso o não fizessem seriam condenados à morte e os seus bens confiscados a favor da coroa. Alertado para o grave prejuízo económico que tal expulsão acarretaria, pela grande fuga de capitais, o rei procurou então reter os judeus no País, ordenando que aqueles que se convertessem ao cristianismo poderiam permanecer. O prazo para o baptismo dos convertidos era a Páscoa do ano seguinte, 1497.
Um número indeterminado de judeus convertidos permaneceu no País. Graves dissabores os esperavam.
Fundada em 1536, no reinado de D. João III, por acordo celebrado com o Papa Paulo III, a Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício perseguiu, julgou e puniu com cruel severidade as alegadas práticas judaizantes a que se dedicariam os judeus convertidos, os denominados cristãos-novos.
De entre os sentenciados na fogueira pela Inquisição, Borges Coelho, na obra Inquisição de Évora, (Dos Primórdios a 1668), menciona Heitor de Brito Godins, membro da nobreza bejense, acusado de judeu e sem fazenda.[4]
A ser o supracitado Heitor de Brito familiar dos Brito Godins, e tendo sido sentenciado em auto-de-fé em 19/09/1625, foi o dito filho de Manuel de Brito Godins e irmão de Pedro de Brito.[5] Em 1620/21 foi irmão de primeira condição da Misericórdia de Beja.[6]
Conforme o sumário descritivo do Proc. 6684 da Inquisição de Évora, Heitor de Brito era natural e residente em Beja, filho de Manuel de Brito e de Isabel de Mendonça. Acusado de judaísmo, apostasia e heresia, foi preso em 04/07/1625 e sentenciado em auto-de-fé em 19/09/1625.
No rol nominal dos processos inquisitoriais disponibilizado pelo Arquivo Nacional-Torre do Tombo, ANTT, de entre os sentenciados pela Inquisição de Évora achei os seguintes processos respeitantes a naturais e residentes em Beja:
 
Proc. 2886
Diogo Raposo Chanoca, viúvo de Maria Freire de Carvalhal, natural e residente em Beja, tabelião de notas e proprietário, acusado de heresia e apostasia. Filho de Francisco Raposo Chanoca, proprietário, e de Leonor dos Anjos. Saiu em liberdade em 23/11/1723;

Proc. 1664
Francisco Raposo de Carvalhal, natural de Beja, alferes de cavalos no Regimento de Arraiolos, acusado de judaísmo. Filho de Diogo Raposo Chanoca e de Maria Freire do Carvalhal. Faleceu no Hospital Real de Lisboa em 05/08/1723, não se encontrando em seu perfeito juízo. Pai e filho, um sai em liberdade, o outro falece no Hospital Real de Lisboa, enlouquecido. O sumário do processo não informa sobre a causa da insanidade;

Proc. 4467
Manuel Alfar, casado, sapateiro, natural de Beja, acusado de judaísmo. Filho de Francisco Rodrigues e de Sebastiana Cruz. Apresentado em 3/03/1668;

Proc. 2436
Francisco Rodrigues Alfar, natural e residente em Beja, meirinho da auditoria. Saiu em liberdade em 17/12/1723;

Proc. 1495
António Bocarro, casado, lavrador, natural de Beja, acusado de judaísmo, apostasia e heresia. Filho de Manuel Lopes e de Ana Bocarra. Sentenciado em auto-de-fé em 7/11/1640;

Proc. 4124
Maria Bocarra, solteira, natural e residente em Beja, filha de Manuel Lopes e de Ana Bocarra. Acusada de judaísmo, apostasia e heresia. Presa em 21/10/1625 e sentenciada em auto-de-fé em 01/04/1629. A ré foi admoestada várias vezes por omitir culpas; foi absolvida de excomunhão e mandada para Beja para cumprir pena;

Proc. 6568
Maria Bocarra, casada, 20 anos de idade, natural e residente em Beja, filha de Francisco de Mateus e de Maria Noutela. Acusada de judaísmo, apostasia e heresia. Presa em 01/04/1632 e sentenciada em auto-de-fé em 05/03/1635;

Proc. 1925
Ana Bocarrra, casada, natural de Beja, acusada de judaísmo, apostasia e heresia. Filha de Miguel Pereira de Lacerda e de Inês Lopes de Bom dia. Sentenciada em auto-de-fé em 9/11/1626. Dos Bocarro temos como certo que António Bocarro e Maria Bocarra (proc. 4124) são irmãos. É de presumir que os restantes Bocarro, Maria Bocarra e Ana Bocarra, sejam seus familiares, dada a proximidade temporal dos processos inquisitoriais e serem todos naturais de Beja. Neste caso o elemento feminino é maioritariamente visado pela perseguição inquisitorial;

Proc. 2638
Maria Cochilha, casada, natural de Beja, acusada de apostasia, heresia e judaísmo. Filha de Brás Dias e de Isabel Jorge. Em 27/07/1628 foi-lhe mandado tirar o hábito e levantar o cárcere;

Proc. 272
João de Góis Cochilha, cristão-novo, casado com Branca Nunes, de 46 anos de idade, natural e residente em Beja, comerciante, filho de Luís de Góis, curtidor, cristão-
-novo, e de Leonor Mendes, parte de cristã-nova. Acusado de judaísmo. Preso em 20/11/1720 e sentenciado em 21/10/1723. Absolvido na Sala do Santo Ofício e levantado o sequestro de bens. Antes de ser preso pela Inquisição de Lisboa já tinha sido preso pela Inquisição de Évora em 22/10/1720;

Proc. 9404
António Dias Cochilha, solteiro, natural e residente em Beja, advogado, filho de Luís de Góis e de Leonor Mendes. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. Foi preso em 28/10/1720. Desconhece-se a data da sentença.

João de Góis Cochilha e António Dias Cochilha, irmãos, cristãos-novos, presos pela Inquisição de Évora em datas muito próximas. Em todos os sumários de processos consultados o referente a João de Góis Cochilha é o único que refere a sua condição de cristão-novo;

Proc. 5023
Brites Soares Azeitada, também conhecida por Brites Brava ou Brites Azeitada, casada com Manuel Mestre Cochilha, lavrador, natural de Beja, acusada de judaísmo, heresia e apostasia. Filha de Estêvão Bravo, lavrador, e de Mor Azeitada. Foi mandada sair dos cárceres em 14/08/1630 para ir cumprir a penitência em Beja;

Proc. 5214
Bartolomeu Azeitado, escrivão das sisas, natural de Beja, acusado de perjúrio e falsidade. Por provisão de 02/01/1574 o degredo que o réu estava a cumprir em Tânger foi interrompido;

Proc. 5185
Baltasar Lopes Cardoso, viúvo de Graça Lopes, natural de Beja, licenciado, acusado de Judaísmo, heresia e apostasia. Sentenciado em 10/05/1567: o réu não podia sair do Reino sem licença do Santo Ofício;
 
Proc. 2062
Fernão Lopes Cardoso, casado com Brites Pinta, natural de Beja, proprietário, filho de Rui Lopes, proprietário, e de Brites Dias. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. Preso em 09/05/1619 e sentenciado em auto-de-fé em 14/05/1623. Em 21/07/1623 foi cumprir penitência para Beja; foi-lhe tirado o hábito e levantado o cárcere e comutado para penas espirituais m 18/04/1625;

Proc. 5803
Diogo Lopes Cardoso, solteiro, natural e residente em Beja, filho de Belchior Lopes Cardoso e de Leonor Gomes. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. Preso em 21/05/1623 e sentenciado em auto-de-fé em 19/10/1625. Por omitir culpas e nomes de pessoas foi atormentado e ameaçado com o relaxo à justiça secular; em 15/12/1625 foi mandado para Beja para acabar de cumprir a penitência;

Proc. 3229
Belchior Lopes Cardoso, casado com Leonor Gomes, natural de Beja, lavrador e mercador de trigo. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. O réu suicidou-se antes de dar entrada nos cárceres do Santo Ofício; foram citados os filhos e herdeiros para defenderem a honra e a fama, provando-se que o réu se encontrava fora do seu juízo, pelo que foi absolvido.
O sumário do processo não indica qualquer data;

Proc. 2327
Gaspar Lopes Cardoso, solteiro, natural de Beja, bacharel em leis, filho de Rui Lopes Cardoso e de Brites Dias. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. Preso em 14/04/1620 e sentenciado em auto-de-fé em 14/06/1624: o réu morreu nos cárceres da Inquisição em 22/05/1621.
Particularmente visada pela Inquisição foi a família Lopes Cardoso, no primeiro quartel do séc. XVII.
Fernão Lopes Cardoso, proprietário, é irmão de Gaspar Lopes Cardoso, bacharel em leis, ambos filhos de Rui Lopes, proprietário, e de Leonor Gomes.
Diogo Lopes Cardoso é filho de Belchior Lopes Cardoso, lavrador e mercador de trigo, e de Leonor Gomes.
Também Baltasar Lopes Cardoso, sentenciado no século antecedente, era licenciado;

Proc. 5447
Pedro Fernandes Magro, casado com Lourença de Mercês, natural e residente em Beja, proprietário que vivia de sua fazenda, filho de Brás Afonso Magro e de Catarina Dias. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. Apresentado em 18/04/1668 e sentenciado em 08/10/1679: foram extraídas culpas contra o réu, entre outros, dos processos de seus primos. O réu denunciou, além de outros, seu irmão, Brás Afonso, e os parentes já citados. Foi absolvido das penas de excomunhão maior e de confisco de bens;

Proc. 4343
João Magro, casado com Maria Penha, natural de Beja e residente em Serpa, sapateiro, filho de Manuel Rodrigues Barque e de Joana Baptista. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. Apresentado em 30/08/1669, abjurou em 17/12/1674, tendo então 27 anos; saiu em liberdade em 19/12/1674;

Proc. 6815
André Rodrigues Magno ou André Rodrigues Magro, casado com Paula Fernandes, natural e residente em Beja, rendeiro, sirgueiro e tratante, filho de Manuel Rodrigues Barque, sirgueiro e de Fernanda Baptista. Acusado de judaísmo, heresia e apostasia. Apresentado em 03/06/1669, foi ouvido em 03/11/1676 e abjurou em 04/11/ 1676; foi mandado sair em liberdade em 05/11/1676;

Proc. 9191
José Soares Magro, solteiro, natural e residente em Beja, advogado, filho de Manuel Magro, que vivia de sua fazenda, e de Leonor Cordeira. Acusado de apostasia e heresia. Foi preso em 19/10/1720 e sentenciado em 23/11/1723. No inventário de 22/11/1720 disse ser filho-família, não possuindo quaisquer bens. Teve libelo, que contestou. Em 23/11/1723 foi-lhe passado termo de ida e de segredo;
Da família Magro temos como certo que João Magro e André Rodrigues Magno, ou Magro, eram irmãos, ainda que o sumário dos processos refira Joana Baptista como mãe do primeiro e Fernanda Baptista como mãe do segundo.
 
Conclusão
Para além do presumível Heitor de Brito Godins, membro de família pertencente à nobreza local e que ao longo de séculos esteve ligada à governança da Cidade, não detectámos, no confronto com os documentos, quaisquer outros membros da oligarquia local que tenham sido objecto de perseguição inquisitorial. Os Pegas de Beja, Rebelo de Macedo, Seixas Machado, Sousa de Castelo-Branco, Rebelo Machado, Brito de Andrade, Freire de Andrade, Carvalhal Freire, Aboim Pereira, Bocarro Pegas, Estaço de Negreiros, Brito de Carvalhal, Seixas Freire, Alcoforado e outros, que asseguravam, numa feição oligárquica, as vereações camarárias, o oficialato das ordenanças e a provedoria da Misericórdia, estão ausentes do rol dos sentenciados pela Inquisição de Évora.[7] O seu estamento social concedia-lhes imunidades e privilégios e a sua linhagem abonava-os como limpos de sangue, para o que concorria uma reprodução de cariz endogâmico, para além de que eram eles os grandes beneficiários de uma ordem social, religiosa, económica, política e cultural cuja alteração redundaria sempre em seu prejuízo.
Havia, ainda, uma aproximação às estruturas inquisitoriais através da obtenção do grau de familiar do Santo Ofício. Pela preeminência da fronteira entre cristãos-novos e cristãos velhos constituía tal estatuto uma distinção muito procurada.[8] De aparelho persecutório e repressivo tornara-se também a Inquisição promotora de distinção e prestígio social.
“(…) o sangue, não só funcionava como uma referência biológica, moral e metafórica, como impunha as classificações estamentais, determinava as sociabilidades e ultrapassava o domínio do parentesco para se transformar em princípio de classificação sócio-cultural.”[9]
A aversão à novidade e ao arbítrio, pelo menos até ao final da segunda metade do século XVIII, era característica da cultura política coeva. A heresia era sempre uma disrupção da ordem vigente; extraordinário seria, pois, que os seus guardiães fossem a ela atreitos.
Félix Caetano da Silva, em finais do século XVIII, esclarece-nos acerca da gente da governança citadina:
“(…) De alguns livros da historia do Reino, e de outras memorias particulares e manuscritas consta que a governança de Beja no senado da Camara da mesma andou sempre de tempos muito antigos na principal fidalguia e nobreza que tanto naquelles tempos illustraram esta cidade com as famílias que nella residiram. Taes foram as famílias distinctas:
Mafaldos, Bejas, antigos e modernos, Lobos Raposos, Raposos, sómente, Sequeiras, Castros, Britos, Barretos, Bocarros, Pachecos, Villarinhos, Pegas Bejas, Paes Viegas, Machados, Rebelos, Machados Sacotos, Carvalhaes, Gagos, Limas, Gouvêas, Oliveiras Azevedos, Oliveiras, sómente, Godins Patos, Britos Godins, Godinhos, Farias, Pereiras, Lacerdas, Rebelos Macedos, Cardosos Torneos, Gaviães, Castel Brancos, Estaços Negreiros, Sampaios, Castanhedas, Sousas, Britos e Andradas, Brandões Limas, Seixas, Soares.
E muitas outras mais que antigamente residiram nesta cidade, e a enobreceram; não cedendo nesta parte vantagem a muitas outras deste reino.”[10]
Quem são, pois, os perseguidos, os heréticos e os seus familiares, qual o seu estatuto social?
Da amostragem por nós atrás referenciada constatamos que, entre sentenciados e respectivos pais, têm os seguintes estatutos sociais:
-homens de ofício – dois sapateiros, um curtidor, um sirgueiro;
-ligados à actividade comercial – um comerciante, um que é lavrador e mercador de trigo, um que nos é indicado como rendeiro, sirgueiro e tratante;
-ligados à actividade agrícola ou que têm rendimentos próprios – um lavrador, quatro proprietários, um que vive de sua fazenda;
-um alferes de cavalos no Regimento de Arraiolos;
-funcionários ligados ao oficialato municipal ou ao aparelho judicial – um meirinho, um escrivão, um tabelião de notas que é também proprietário, três advogados, um bacharel em leis, um licenciado.
Das mulheres sentenciadas, quatro, três são da família Bocarro. É-nos difícil definir qual o seu estatuto social, pois que este estaria sempre subordinado ao de seus familiares ou cônjuges. A mulher não se autodeterminava socialmente, a não ser nos casos, esporádicos, em que exercesse uma actividade económica, quase sempre ligada ao comércio, v.g. vendeira, padeira, pescadeira, regateira, medideira no terreiro do trigo. Sobre as Bocarro temos, contudo, a notação de que António Bocarro, irmão de Maria Bocarra, seria lavrador, o que lhe concedia um estatuto social mediano.
São todos, pois, gente que não integra a governança camarária, cidadãos de segunda condição sem estatuto de nobreza, ligados a actividades mecânicas, ao comércio, lavoura, jurisprudência e oficialato municipal. Não são ociosos, vivendo à lei da nobreza, condição sine qua non para ascender aos cargos mais preeminentes e ao estamento nobre.
Os processos por nós consultados, 23 no total, 2 respeitam ao século XVI, 15 ao século XVII e 6 ao século XVIII. E apesar desta amostragem ser pouco significativa de um ponto de vista quantitativo, o universo sócio-ocupacional da comunidade cristã-nova elvense, durante o período correspondente ao reinado de D. João IV, apresenta notórias semelhanças com o quadro por nós descrito: 10% sapateiros, 9% mercadores/tendeiros, 8% alfaiates, 4% curtidores, 4% almocreves, 4% médicos/cirurgiões/boticários, 6% advogados/funcionários concelhios, 17% militares, 6% lavradores, 9% sem informação e 23% outros.[11]
Ainda na Inquisição de Évora, e dos primórdios até 1668, “44,6% dos relaxados são mercadores, tratantes, homens que vivem por sua fazenda, marceiros, tecelões, tintureiros, trapeiros, sirgueiros, 19,9% alfaiates, 13,5% sapateiros (alguns são mercadores e couros e pequenos industriais), 13% cirurgiões, médicos, advogados, boticários.”[12]
A condenação de Heitor de Brito Godins deverá, pois, entender-se como um acto isolado, que de forma alguma tipifica quaisquer formas de perseguição prosseguidas pela Inquisição relativamente à gente da governança da cidade de Beja. Os seus interesses de classe, o seu estamento, eram de todo desconformes com tal possibilidade.




[1] Sesinando de Seixas Freire foi vereador por 6 vezes, nos anos de 1632/1633/1634/1635/1636 e 1640 e serviu de capitão de ordenanças no ano de 1639. Cf. Joaquim Filipe Mósca, Elites Urbanas e Poder local em Beja no Reinado de Filipe III (1621-1640), Dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses Multidisciplinares apresentada ao Departamento de Ciências Sociais e de Gestão/Departamento de Humanidades da Universidade Aberta, 2011, p. 63 e p. 160. Disponível em http://hdl.handle.net/10400.2/2603.
Sesinando de Seixas Freire foi um dos presentes no acto de aclamação de D. João, Duque de Bragança, como rei de Portugal, realizado em 5 de Dezembro de 1640 nas Casas da Câmara de Beja, tendo assinado o auto que a propósito se redigiu. Cf. idem, ibidem, p. 310.
[2] Cf. AHMB, Vereações, Lvº 52, fls. 137-137vº.
[3] Uma vara equivalia, aproximadamente, a 11 decímetros.
[4] Cf. António Borges Coelho, Inquisição de Évora (Dos Primórdios a 1668), Vol. I, Lisboa, Editorial Caminho, 1987, p. 174.
[5] Cf. Joaquim Filipe Mósca, op. cit., p. 305.
[6] Cf. idem, ibidem, p. 177.
[7] Cf. Joaquim Filipe Mósca, op. cit., pp. 161, 167 e 187-189.
[8] Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, “Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime”, in Análise Social, vol. XXXII (141), 1997 (2. °), p. 362. Disponível em http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1221841114L2pRA2hp0Wl44RL7.pdf.
[9] Cf. João Manuel Vaz Monteiro de Figueiroa Rego, “A Honra Alheia por um Fio”. Os Estatutos de Limpeza de Sangue no Espaço de Expressão Ibérica (sécs. XVI-XVIII), Tese de Doutoramento apresentada à Universidade do Minho, 2009, p. 411. Disponível em http://hdl.handle.net/1822/9820.
[10] Cit. Félix Caetano da Silva, “Vereadores da Câmara de Beja”, in Arquivo de Beja, Vol. I, Fasc. IV, 1944, p. 337.
[11] Cf. Maria do Carmo Teixeira Pinto, Os Cristãos-Novos de Elvas no Reinado de D. João IV, Dissertação de Doutoramento em História apresentada à Universidade Aberta, 2003, p. 363. Disponível em http://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/2051/1/TD-MCTP.pdf
[12] Cf. António Borges Coelho, op. cit., p. 32.

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