A NOVA DOGMÁTICA



A uma perspectiva historiográfica acientífica, fortemente ideologizada, pautada pelo fabuloso e lendário, que nos foi legada pelo Estado Novo, sucede agora uma nova perspectiva cujos fundamentos são o preconceito de cariz moralista, descontextualizado, de contornos marcados pela intolerância e pelo dogmatismo bipolar, simplista e ignorante.
A um passado marcado pela gesta de uma multidão de heróis e santos, obreiros de tarefas ciclópicas, sucede agora a perspectiva de um passado histórico marcado pela acção de hordas de facínoras de que nos devemos amargamente envergonhar e penitenciar.
Toda a simbologia que ritualiza e presentifica esse abominável passado é agora objecto de repúdio e de violência vandálica. Começámos pela arte pública, com a destruição de estátuas, mas a continuarmos nesta senda não tarda estamos a assistir à exigência da revisão e reescrita dos manuais escolares, à crítica feroz e destrutiva de todo o legado pictórico, literário, arquitectónico, a tudo aquilo, enfim, que celebre esse passado.
A iconoclastia tem sido recorrente ao longo do processo histórico, sempre aconteceu em momentos de ruptura violenta, revolucionária. Os exemplos são múltiplos e nós conhecemo-los da nossa história. Não é hoje o caso. Temos agora o tempo, a tranquilidade e a serenidade que nos proporciona a vivência democrática para discutirmos tal problemática, sem termos que recorrer ao vandalismo primário e simplista.
Porque mais do que práticas iconoclastas o que está agora em questão é o repúdio de todo um legado identitário. O julgamento do passado à luz do ideário moral e cultural hodierno, que ainda assim não é consensual, não é mais do que uma projecção que se funda na ignorância e na ausência de uma perspectiva diacrónica, fundamental em História. Se os arautos desta nova moral pseudocientífica tivessem vivido em épocas passadas o que teriam sido? Acérrimos antiesclavagistas, defensores estrénuos de minorias étnicas, religiosas, de género? Teriam sido defensores de práticas e conceitos que à época tampouco existiam ou não eram objecto de sanção penal, moral ou social? Ou teriam agido exactamente como aqueles que condenam?
Pensemos em Camões, símbolo máximo dos valores da nacionalidade. Não é difícil descortinarmos na sua obra, máxime n’Os Lusíadas, traços de imperialismo, xenofobia, islamofobia, e do mais que queiram, da parafernália diabolizadora dos novos moralistas. Que fazer? Esconder esse legado? Reescrevê-lo? Queimá-lo em redentoras e purificadoras fogueiras? Ou lê-lo, estudá-lo e comprazermo-nos na fruição da sua superior estética, de uma forma crítica e contextualizada? A opção aqui é clara; é entre a cultura e a barbárie, entre a inteligência e a imbecilidade.
E todos os outros, presentes na toponímia e celebrados das mais diversas formas? Vamos apagá-los da memória colectiva? Vamos destruir todos os nossos referentes identitários, vamos renegar todo o nosso passado, vamos ser uma nação sem memória ou com uma memória que havemos de renegar todos os dias? O que seremos então?
Nesse passado há, felizmente, motivos de orgulho: no campo das artes, da ciência, das técnicas, do direito. E houve nele, também, notáveis avanços morais e sociais. E continua a haver uma historiografia responsável, atenta e que se pauta pela prática científica. Dá-nos ela uma visão modelar, definitiva desse passado? Obviamente que não. Também a perspectiva histórica, apesar de se arrogar da cientificidade, não se escapa às representações culturais, estéticas sociais e políticas da sua época. Ela evolui, como evoluem as sociedades humanas.
A propósito, o fenómeno esclavagista está de todo erradicado? Não há milhões de homens, mulheres e crianças sujeitos a condições de trabalho degradantes? Não está o nosso mundo assoberbado de problemas de uma tal gravidade que põem em causa a sua própria sobrevivência, como nunca ocorreu no passado? Não será isso mais merecedor da nossa atenção e cuidado do que andar a grafitar estátuas?

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